O futebol continua a surpreender-nos com lances incríveis, que testam a nossa capacidade de interpretarmos algumas leis de jogo.
Na passada jornada aconteceu mais um, que acabou por dividir opiniões, deixando meio mundo a criticar a outra metade. Podem não entender, mas isso é normal e não significa que metade esteja certa ou a outra metade errada.
No entanto, pensem comigo. Se uma situação de jogo é capaz de potenciar divergência tão grande entre adeptos, jornalistas, comentadores, "especialistas em arbitragem" e até árbitros no ativo... acham mesmo que ela pressupunha intervenção VAR? Acham mesmo que o vídeo árbitro estaria protocolarmente obrigado a agir num lance assim?
As instruções são claras: só deve haver revisão se as imagens provarem que o erro cometido em campo foi claro e óbvio. Ora por aqui morre o primeiro fator, o emocional, que esteve na base de tantas reações desajustadas e, nalguns casos, maliciosas.
Dito isto e deixando claro que o nome de jogadores, clubes ou árbitros será sempre irrelevante (o que está em causa é tentar esclarecer a situação), fica aqui a argumentação técnica da minha visão do lance:
- O jogador atacante estava em posição de fora de jogo quando a bola foi cruzada;
- Nesse momento, um dos defesas tentou movimentar-se para a zona interior da sua área, de forma a ficar em posição privilegiada para poder disputar a bola ou intercetar o lance;
- O jogador que estava em posição de fora de jogo nunca tocou na bola (não era esse o seu objetivo), mas parou deliberadamente naquele local (era esse o objetivo tático). Parou e fez "corpo firme" e rotação de corpo, de forma a impedir a progressão do adversário. Que fique claro: não foi o defesa não se projetou contra o atacante nem este estava estático e imóvel.
- Esse movimento corporal que o atacante realizou é conhecido como "bloqueio" e permitido em desportos como o basquetebol, mas é proibido no futebol. É ilegal. Sempre ilegal. É a própria lei do fora de jogo (a 11), que o refere explicitamente:
- " Se um jogador em fora de jogo se mover para se colocar no caminho de um adversário e impedir a sua progressão - por exemplo, se bloqueá-lo -, deve ser punido (...)".
Mais claro impossível. Concordam? Mas há outro detalhe que convém aqui realçar:
- Este tipo de ações, estes bloqueios (em que o jogador usa o corpo como parede à progressão do adversário) é faltoso mesmo que quem o adversário não caia (ou caia de forma teatralizada). Mesmo que até fique de pé.
É que ao contrário de outras infrações (como as rasteiras e empurrões, por exemplo), no bloqueio não tem que haver consequência. Não tem que haver causa/efeito. Basta a ação, a atitude irregular do bloqueador. A sua intenção. O gesto que faz.
Agora reparem: um jogador em posição de fora de jogo, impede com o corpo (com contacto físico) que o adversário se mantenha na jogada, enquanto ele próprio mantém-se. Enquanto ele próprio segue no apoio aos colegas de ataque.
Isto não belisca o vosso conceito de justiça?
Mas não fiquemos por aqui. Mudemos o chip. Foquemos na outra possível infração, a do fora de jogo:
- De facto, a regra é ambígua quando fala em " interferência sobre adversários", porque coloca a bola na zona ou perto dela. Verdade.
Mas acompanhem o raciocínio. Uma das premissas nela referidas é que " um jogador que se encontre na posição de fora de jogo, esteja no caminho do adversário e interfira com o seu movimento em direção à bola, deve ser sancionado se tal impactar na sua capacidade de a jogar ou disputar"...
Reparem... interfira com o seu movimento em direção à bola e... " impactar". Segundo conclusão de curso da UEFA, ter impacto sobre um adversário é " tomar uma ação que leve o defesa a ver sua capacidade de atuação atrasada, dificultada ou impedida por quem estava em fora de jogo".
Colem esta regra escrita ao desenho prático do que aconteceu em campo digam-me: houve ou não um houve um defesa que ficou fora da jogada porque o adversário em fora de jogo moveu-se, havendo contacto físico entre ambos?
Ainda são da opinião que não? Certo. Vamos a outro argumento do texto da lei:
Há fora de jogo por interferência quando o avançado "t oma uma ação óbvia que impacte na capacidade do adversário jogar a bola".
Então pôr o corpo a fazer de parede à progressão do defesa não é uma ação óbvia? Abdicar de disputar um lance de ataque, apenas para tentar parar a corrida do adversário, não é uma ação óbvia? E o defesa, se passasse sem ser estorvado, se não tivesse uma barreira humana à sua frente no momento do cruzamento da direita, não ficaria numa zona privilegiada para tentar disputar a bola ou intervir no lance? Num lance que até andou às carambolas naquele local, antes da bola entrar? Num lance onde até veio a participar ativamente o próprio avançado, autor do bloqueio inicial?
É esta "justiça" que se espera das regras? Que os avançados se coloquem em posição de fora de jogo e comecem a bloquear defesas contrários, só porque a bola não está lá? E esses defesas, que ficam relegados da jogada e sem possibilidade de ajudar cá atrás, que "justiça" recebem? Um golo legal na sua baliza? Isso faz sentido para alguém?
Entre o bloqueio e o fora de jogo, algum dos motivos devia ter valido a anulação do lance. Esta é a minha opinião sincera. Mas como referi e quero sublinhar, estamos a falar de um momento técnico extremamente ambíguo, que abre espaço para entendimentos como este ou como aqueles que fizeram os árbitros ou outras pessoas.
Faz parte.
O que não faz parte - mas também não é nada de novo - é que ainda haja quem se sinta menorizado por opiniões diferentes da sua, como se fossem um ataque à independência do seu pensamento.
Não é. Não foi. Nunca será.
Só mesmo na cabecinha pequenina de gente que se sente acossado de cada vez que a maioria mora no sentido inverso da estrada.
Bom, bom era haver esclarecimento oficial que matasse o tema de vez. Aprendíamos todos.
Até lá, mais liberdade e respeito para quem tem por missão pronunciar-se publicamente sobre lances de jogo.