No tempo em que os tigres fumavam, os jogadores usavam camisolas sem o número nas costas ou publicidade no peito. O 12 era sempre o guarda-redes suplentes, o sopas, como se dizia na minha aldeia, num tempo que havia jogos em campos sem relva, os famosos pelados, e se ouvia o relato.
Levei anos a compatibilizar-me com a ideia de que nem o estádio de Alvalade é em Alvalade, nem o Benfica fica em Benfica. No tempo em que os jogadores tinham bigode, os clubismos eram os possíveis. Recusávamos roupa encarnada, nunca quereríamos ser tomados por benfiquistas, o azul não fazia mal, o Porto não existia. Escolhíamos o nosso clube no subbuteo, mesmo que as riscas nas camisolas dos jogadores do Sporting parecessem ter sido pintadas por alguém com delirium tremens. As discussões chegavam a ser de alta política: o Benfica era de Lisboa, o Sporting era de Portugal.
O futebol era-nos imensamente distante, líamos a revista francesa Onze e sonhávamos encomendar a camisola do St. Etienne, aprendíamos a geografia da Europa de Leste através dos adversários nas competições UEFA (nunca mais me esqueci de Ostrava).
O Benfica pairava como uma assombração, tão português como assistir ao José Cid no Festival da Canção ou ao Fernando Pessa no Telejornal. Era incontornável. À minha volta, havia muitos benfiquistas e por todo o lado. Não se calavam com o terceiro anel, depois com o fecho do terceiro anel, depois com a constatação de que não se via o campo do terceiro anel. Não se calavam com o Eusébio, com as taças de campeões europeus, com o Strömberg, o Chalana, estavam sempre a dizer que num combate na selva uma águia conseguiria vencer um leão e que o encarnado era uma cor mais bonita do que o verde. Os benfiquistas eram o que sempre foram, uns chatos, sempre a benficar tudo e a fazer piadas com o Natal. Nas coleções de cromos, os jogadores do Benfica tinham sempre o ar sorridente e confiante de quem sabe que basta levantar o braço para o árbitro apitar e marcar fora de jogo.
A camisola enfiada no calção, as meias puxadas até cima, as chuteiras pretas engraxadas, com três riscas de branco Pepsodent. A seleção não se conseguia sequer apurar para as grandes competições, mas que importava isso se havia o Benfica e o raio do terceiro anel no maior estádio do universo, só superado pelo Maracanã, e o Álvaro que tinha seis dedos e o Alves que usava luvas pretas e mais o grupo do Barreiro e o Filipovic e os clubes da Roménia, porque o Benfica parecia estar sempre a jogar com clubes da Roménia. Houve um que nunca sujava os calções, chamado Tamagnini e um outro, um bigodaças, chamado Minervino, o Nené e Pietra, foi no tempo em que os jogadores só precisavam de um nome para serem gente, quando mais curto fosse o nome, melhor para todos.
Como a cal num muro, esse Benfica foi desaparecendo e deve ser por isso que desde há uns anos que os meus amigos andam empolgados, sempre no estádio com os filhos a fazer vídeos para as redes sociais, de cachecol ao pescoço, a debater o Jórjus, o Félix e se o Vlachodimos é ou não é homem para o Benfica.
O Benfica é campeão com mérito, julgo. Não vi um jogo do Benfica, salvo com o Porto, interessam-me pouco ou nada as arrancadas deste e daquele, se o Enzo isto ou o António Silva aquilo. Curioso o nosso desapego em acompanhar os rivais, salvo quando nos cheira que podem perder, mas é mesmo assim, insano e displicente. Não me custa por aí além que o Benfica seja coroado, não será a primeira vez que tenho de o suportar. Custa-me a pouca sorte que o Sporting teve no calendário nas primeiras rondas (foi a Braga e quase ganhou, foi ao Porto e perdeu, jogando bem), que nos prejudicou fatalmente o embalo.
O campeonato português é fácil de vencer se se tiver sorte e se se souber usar a superioridade de ter jogadores melhores. Foi o que aconteceu, suponho, não vi os jogos, ouvi dizer. Custa não vencer o título, mas vai custando menos, também porque a competição perde interesse e a nossa atenção.
Há dois anos, quando Sporting venceu o campeonato, bastantes amigos deram-me os parabéns. Fiquei espantado, da última vez que vencêramos não havia telemóveis (acho). Retribuirei as felicitações, sabendo que não há nada que possa ser feito a não ser aguentar firme, porque tudo passa, até o Benfica campeão.