Duarte Gomes faz um retrato - que pode parecer fictício e empolado, mas não é - do que são 10 meses na vida de um árbitro durante o ano civil. Do constante achincalhamento ao serem chamados de filhos de uma grande meretriz antes sequer de começarem a apitar, o antigo árbitro descreve o ingrato que é o momento mais alto da carreira de um(a) responsável pelo apito ser quando ninguém fala deles. E de como o respeito que lhes é devido raramente ser dado
Não é nada fácil, esta coisa de tentar humanizar o papel dos árbitros. Quando alguém tenta, é logo atacado pelas tiradas do costume:
“Lá vem o corporativismo habitual, olha este a tentar justificar o injustificável, é preciso ter muita lata, assim nunca mais evoluem” e tal.
Consigo perceber a crítica.
Mas é importante recordar que a missão das equipas de arbitragem é uma das mais expostas no futebol e provavelmente uma das mais visíveis da atualidade. Por “visíveis” leia-se aquela que tem as portas escancaradas para todos verem e reverem. Para que todos testemunhem, a toda a hora, as suas ações e omissões, as suas boas e más decisões.
Se acham que estou a exagerar ou se entenderem que isto não é bem assim, acompanhem-me neste exercício:
Imaginem que estão no vosso consultório, escritório, oficina, onde quer que trabalhem... e que tudo o que fazem é escrutinado ao pormenor, por um país inteiro. Dos mais novos aos mais velhos, dos mais calmos aos mais rabugentos, dos mais simpáticos aos mais ferozes.
Toda a gente vê cada imagem, cada gesto, cada expressão facial, cada um dos vossos movimentos.
Imaginem o que é trabalhar assim todos os dias das vossas vidas, fazendo algo que é observado ao detalhe e comentado centenas de vezes, por milhares de alminhas, durante semanas a fio.
Imaginem o que é chegarem ao vosso local de trabalho e serem recebidos com insultos e ameaças ou com cuspidelas e pedradas. Reparem: ainda não começaram a trabalhar e já são corruptos, filhos de uma grande meretriz ou cavalheiros de orientação sexual indefinida.
Imaginem que durante esse dia e já em funções, são constantemente achincalhados, pressionados e assobiados por toda a gente. Gente que está lá convosco, lado a lado e gente que nunca viram na vida, mas que vos julga e enxovalha, sem nunca terem tentado fazer o que vocês fazem. Imaginem-se a produzir algo de qualidade nessas condições.
Não podem responder, não podem retribuir os impropérios, não podem sequer gesticular. Se o fizerem, aqui-d'el-rei, que o homem mordeu o cão! Pára tudo! Processo em cima, já! No meio de tanta ‘distração’, não se esqueçam do mais importante: têm que continuar focados na vossa missão, porque ela é extremamente importante e difícil de executar.
Imaginem o cansaço mental e físico que sentem no final do dia. Imaginem a vossa exaustão emocional.
Quando terminam, é hora de irem para o conforto do lar e para os braços de quem é mais importante, mas cuidado! Olhos bem abertos, porque à saída podem haver surpresas inesperadas e mais vale prevenir do que remediar.
Evitem repetir trajetos, distanciem-se de gente com ar suspeito, não facilitem, nunca facilitem! As pedras voam e, quando acertam, magoam. Os carros, que custam dinheiro, não são à prova de riscos nem de pontapés. Se a coisa correr bem, as probabilidades de chegarem a porto seguro aumentam exponencialmente. O problema é que nunca sabem bem quando é que, aos olhos dos outros, “a coisa corre bem”.
Já seguros em casa, o que vocês querem é esquecer aquele pequeno pesadelo, abraçar os vossos e recuperar energias para o dia seguinte. Pelo sim, pelo não, não liguem a televisão, não ouçam programas desportivos, não leiam jornais nem consultem as vossas redes sociais. O ego agradece e, com sorte, o paracetamol pode nem ter que sair da gaveta.
Passear com o(a) cônjuge, com os filhos, com os pais ou amigos distrai e faz bem, mas depende quando e para onde. Há momentos em que ficar por casa é o mais sensato. Há outros em que ir aqui ou ali pode ser tão arriscado como andar a pé na Faixa de Gaza, em tempo de conflito armado.
São 10 meses disto. Dez!
Nos outros dois (junho e julho) a coisa acalma, porque o ofício dá tréguas. Ainda assim, escolham bem para onde vão de férias ou que cafés, shoppings e cinemas frequentam. Não vá o Diabo tecê-las (e já teceu várias vezes).
Este retrato pode parecer-vos fictício e empolado, mas não é. É assim, é muitas vezes assim.
Podem sempre dizer-me que “eles estão lá porque querem, ganham balúrdios, nada disso desculpa a incompetência, não têm perdão por tanta leviandade”, etc., etc. Bem... é verdade que há muito para melhorar. Há erros quase inadmissíveis com o recurso à vídeo tecnologia e há tanto por fazer e melhorar. Certo.
Mas nada disso legitima uma vida assim, uma carreira sujeita a isto.
Não há nenhum outro agente desportivo que passe por algo assim, tão castrador a nível profissional e pessoal. Jogadores e treinadores terão momentos de maior pressão, em que são vaiados aqui ou apupados ali, mas já foram elogiados, aplaudidos e venerados. Já viram o seu mérito reconhecido e isso acontece mais vezes do que o contrário.
Com os árbitros não. O momento mais alto das suas carreiras é quando ninguém fala deles. De resto... esqueçamos.
É preciso ter em conta que estes são agentes imprescindíveis em qualquer competição desportiva. Sem árbitros não há jogos oficiais, nem validação de resultados. Merecem mais respeito. Respeito que lhes é devido, mas que raramente lhes é dado. E é por não serem aceites e respeitados que são forçados a passar uma carreira inteira numa espécie de “liberdade condicional”, arrastando todos os seus para essa forma limitada de viver.
Por muito que me digam que faz parte, não faz.
Um dia vamos todos ter que aprender a distinguir crítica técnica de ataque ao homem. Enquanto não o fizermos…