Depois de um período bastante conturbado que veio trazer a público um conjunto de práticas não especializadas que, infelizmente, proliferam no meio desportivo (e empresarial) no que respeita ao treino de competências para a otimização do desempenho, eis que Carlos Alcaraz, no seu testemunho a seguir à vitória em Wimbledon, veio dar visibilidade novamente à psicologia, enquanto disciplina cientifica que pode suportar o desempenho de top performers - a saber: atletas, treinadores, árbitros, mas também dirigentes, gestores, médicos e todo o tipo de pessoas que necessitam de ter desempenhos em contextos de elevada pressão, sem prejuízo dos seus indicadores de saúde mental.
“Graças à Isabel estou muito melhor. Sentir-me calmo num ano que tem sido tão exigente é essencial. E do meu ponto de vista, é crucial ir para o court a sorrir, a senti-me feliz. Isso ajuda-te mentalmente. Para mim, é tudo”, disse o espanhol.
Mas quem é a psicóloga que Alcaraz integrou no seu processo de preparação desportiva?
Isabel Balaguer foi pioneira na área da psicologia do desporto em Espanha, acompanhando atletas ao mais alto nível há mais de 30 anos – era, na realidade, já uma referência na área quando iniciei a minha carreira há 25 anos.
E é aqui que as coisas se começam a complicar um pouco no contexto português... quiçá no contexto mundial
O alto rendimento
Na realidade, quando falamos de alto rendimento, não podemos continuar a manter o paradigma de que este é apenas uma exigência para atletas e treinadores – em boa verdade, não conseguimos desenvolver um setting de alto rendimento se todos os seus interlocutores não assumirem para eles próprios que, também eles, devem exigir a si próprios alto rendimento.
Falo de dirigentes, médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, suporte administrativo e logístico, pois só conseguimos gerar atletas de alto rendimento se todos assumirem essa missão de igual forma.
Mas, para este exercício de reflexão, debrucemo-nos apenas em quem deve assumir a responsabilidade do desenvolvimento das competências psico-emocionais para sustentar os indicadores de saúde mental e de performance de atletas e treinadores: especialistas em psicologia do desporto, devidamente acreditados para desenvolver a sua atividade pela Ordem dos Psicólogos Portugueses ou, no meu entender e experiência profissional, sport scientists com uma robusta especialização na área da alteração do comportamento humano (o que os distingue, necessariamente, dos “curiosos” com práticas pontuais que tanto podem ter de benéfico como de caótico).
Psicologia do Desporto: uma carreira ou a profissão de alguns?
Martin (2020) no seu artigo “Is the Profession of Sport Psychology an Illusion?” retrata muito bem uma realidade que também se espelha no território nacional.
O desconhecimento instalado acerca desta área cientifica por parte dos diferentes agentes desportivos (com maior responsabilidade por parte de quem tem em mãos o processo de tomada de decisão) e a pouca procura de serviços especializados nas últimas décadas, resultou num crescimento de relevo no que respeita á área da investigação, mas paradoxalmente num desenvolvimento lento na especialização de profissionais na área da intervenção pela dificuldade evidente transformar a sua atividade num emprego e/ou ocupação a tempo inteiro.
Daqui resultam dois fenómenos:
1) Não podemos de facto assumir que seja uma área profissional/carreira, mas apenas a profissão que alguns “teimosos(as)” conseguiram perseguir.
2) A criação de um espaço de oportunidade para não especialistas, oportunistas e inconsequentes que, mesmo com a melhor das intenções pecam pela incapacidade em reconhecer a sua própria ausência de competência para trabalhar numa área tão sensível como a da alteração do comportamento humano e, muito em particular, no contexto de alto rendimento (com possíveis implicações até ao nível da deterioração da saúde mental das pessoas com quem operam).
E quatro necessidades:
· As instituições governamentais dotarem as organizações desportivas com os meios para a contratação de técnicos cada vez mais especializados (e, neste caso, em todos as disciplinas científicas, não só a psicologia), muito em particular ao nível do alto rendimento, onde a expertise e experiência comprovada de todo e qualquer agente possa contribuir declaradamente para a criação de um contexto realmente de alto rendimento;
· As organizações desportivas reconhecerem a necessidade inequívoca da integração de profissionais devidamente especializados em psicologia do desporto nos processos de preparação desportiva pelos quais são responsáveis e, não só contribuírem para uma maior empregabilidade na área, mas também para a exigência da qualidade dos serviços prestados;
· A Ordem dos Psicólogos Portugueses e a Sociedade de Psicologia do Desporto assumirem mais notoriamente (não apenas entre pares) a importância dos contributos destes especialistas para o desporto e, na realidade, sociedade em geral.
· Os especialistas em psicologia do desporto apostarem na continuidade da sua especialização, através de formação continua, prática supervisionada e com o especial propósito de entregar serviços ancorados em evidência cientifica;
· E, de igual relevo, a necessidade de todos os envolvidos assumirem que, percorrer os caminhos do alto rendimento, é aceitar uma dedicação quase exclusiva (full time job) e desejavelmente invisível, pois o palco deverá sempre ser dos atletas.
Não bastar querer trabalhar no alto rendimento, é preciso “saber ser e estar” alto rendimento.