Opinião

O Adeus dos Capitães

O Adeus dos Capitães

Laurentino Dias

Ex-secretário de Estado do Desporto

Laurentino Dias, antigo secretário de Estado do Desporto e da Juventude, recorda episódios que viveu com Cristiano Ronaldo e Pepe para agradecer a ambos o que fizeram pela seleção nacional, após a saída de Portugal do que foi o último Europeu da carreira dos dois jogadores

O Euro 2024 não terminou, para a nossa seleção, na final. Acabou mais cedo, no dia em que teve pela frente um adversário forte e, infelizmente, na lotaria final dos penáltis, perdeu. Mas os nossos jogadores bateram-se com grande dignidade. Devemos-lhes esse reconhecimento. Aos dois capitães que estiveram num Campeonato Europeu pela última vez - Ronaldo e Pepe - devemos-lho por este campeonato e pelas suas brilhantes carreiras.

RONALDO

Estávamos no início do verão de 2005. O país tirava a medida a um novo governo desde abril, no qual assumi responsabilidades na área do Desporto. No gabinete, e não me recordando hoje do porquê, alguém me diz que Cristiano Ronaldo estaria de férias em Bali, na Indonésia. Nunca tinha falado ou conhecido pessoalmente o Cristiano, mas decidi ligar-lhe, e desafiá-lo a passar um dos seus dias de férias numa visita oficial a Timor-Leste. Tinha acabado o seu segundo ano como jogador do Manchester United, e a sua fama corria já o mundo. Aqui estava uma oportunidade para uma grande celebração entre os dois países, sabendo-se a força unificante do futebol e da estrela crescente de Ronaldo.

A resposta foi positiva e imediata. Xanana Gusmão, então Presidente, ficou extasiado com a ideia, ele que é também um “apaixonado” pelo futebol. Acertei com o Cristiano a visita relâmpago para o dia seguinte, e parti para Díli em representação do Governo português. A nossa Embaixada auxiliava o Presidente timorense na organização da visita. A multidão que esperava o craque no aeroporto já fazia prever o que ia acontecer no estádio de Díli, momento central da visita. Eram dezenas de milhares de pessoas, jovens sobretudo, que gritavam vivas a Cristiano Ronaldo e a Portugal. Com muita dificuldade, dada a imensidão de pessoas que queriam ver e tocar no Cristiano, lá foi possível um encontro com o Primeiro Ministro Alkatiri, e depois seguir para o Estádio na companhia do Presidente Xanana Gusmão. Este, ao seu bom estilo, tinha equipas prontas para um jogo, e ele próprio sonhava ir à baliza, defender um penálti do Cristiano! Mas foi impossível. O estádio, que é relativamente pequeno, estava submerso por uma multidão calculada em 20 a 30 mil pessoas, que acabaram por encher as bancadas e todo o terreno de jogo. As balizas mal se viam, e as equipas que Xanana tinha preparado tinham sido “absorvidas”. A muito custo, entrámos e subimos para o alto da bancada onde estava montada uma instalação sonora. Quando Ronaldo reparou, assustou-se e, com um olhar suplicante, diz: “Vou ter que falar? Mas não sei que dizer...” Não pude responder mais que: “Fala o que quiseres, o que mandar o coração…”

E, naquela tarde quente de junho de 2005, Cristiano Ronaldo, dividindo o microfone com Xanana, que fazia questão de traduzir para tétum, foi dizendo que “nunca iria esquecer este dia”, e lançou a todos aqueles milhares de jovens o desafio de “nunca desistirem de lutar pela vida”, dando o seu exemplo de alguém que, como eles, nasceu pobre, mas acredita que com muito trabalho se pode vencer.

Eu tão-pouco esqueci essa tarde, nem a mensagem daquele “menino” de 20 anos perante o povo de Timor, que o recebeu em delírio! Merece o respeito de não ser “crucificado” por falhar um golo, ele que já marcou tantos e tão importantes. E que tanto trabalhou para desenvolver o seu futebol de génio, levando com o seu nome também o de Portugal por esse mundo fora, nessa carreira que é já uma das maiores da história do futebol. Obrigado por tudo, Cristiano!

PEPE

Um dia, também no meu tempo de responsável pela pasta do Desporto, deparei com um processo de naturalização de um cidadão brasileiro, de nome Képler Ferreira, que era nem mais que Pepe, jogador de futebol. Confesso que nunca fui, nem sou ainda hoje, facilitista nas naturalizações de atletas, sejam eles de futebol ou de qualquer outra modalidade, pois frequentemente (e infelizmente) acontecem situações de oportunismo pessoal, ou de interesses meramente financeiros.

O processo de Pepe lia-se como um sincero desejo de obtenção de cidadania e, por isso, veio a ser concedida. Depois de tantos anos de dedicação e jogo brilhante por Portugal, como me sinto confortado com o acolhimento pelo nosso país de tão ilustre compatriota!

Este é o Pepe que, segundo as suas próprias palavras, chegou com 17 anos ao aeroporto de Lisboa e, depois de passar o controlo do SEF, meteu a mão ao bolso e verificou que tinha na sua posse a “soma total” de cinco euros. E tinha duas opções: ou comprar um cartão de telefone para dizer à mãe que chegara bem, ou comprar algo para comer, pois teria de esperar horas pelo voo de ligação ao Funchal. Ganhou o amor à mãe. Depois veio a fome. Foi a uma loja de sandes do aeroporto e, confessando não ter dinheiro, perguntou como podia comer qualquer coisa. Um empregado bom samaritano disse “espere!” e regressou com duas baguetes, que foram as boas vindas merecidas, próprias do país irmão!

[esta história foi revelada pelo jogador numa entrevista à Tribuna Expresso, feita em 2021.]

Já em sua plena aclamação no Real Madrid, leio numa entrevista a um diário espanhol que Pepe se afirmava orgulhosamente português, casado com uma portuguesa de Gaia, e com duas filhas. Entretanto, Pepe visita o Gerês, sucedendo na casa que Ronaldo ali construíra. Como também por aqui passo boa parte do meu tempo, desafiei-o a vir conhecer o trabalho louvável de futebol de formação que é feito no Grupo Desportivo do Gerês, com a particularidade de envolver várias dezenas de crianças, e de ser promovido essencialmente por várias mulheres, principalmente mães.

E aí vi o Pepe, com a mulher e filhas, passar uma tarde com essas crianças, que tiveram naquele dia a felicidade de sentirem perto de si um grande campeão, mas também um cidadão sensível e disponível para os jovens do “seu” país.

Enfim, este jovem de 41 anos lá andou pela Alemanha mais uma vez a defender Portugal! Defendeu como sempre fez, com a dedicação, o espírito e a fibra de campeão que ninguém deixará nunca de lhe reconhecer. Obrigado por tudo, Pepe!

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