Opinião

Há Jogos e Jogos...

Há Jogos e Jogos...

Laurentino Dias

Ex-secretário de Estado do Desporto

Sejamos honestos. Esta nova realidade dos Esports, nada e criada nos Estados Unidos, mais não é que o negócio dos jogos e plataformas eletrónicas, utilizando as múltiplas modalidades desportivas. E está a promover o seu caminho em Portugal, envolvendo grupos parlamentares como o PS ou a IL, e instituições académicas como a Faculdade de Motricidade Humana ou o Instituto Piaget. Ou seja, a promover o lobby adequado, para obter não apenas credibilidade pública, mas também a sua regulamentação

1– As luzes da festa apagaram-se na Cidade Luz. Duas semanas de intensa competição desportiva, felizmente nunca ensombrada por incidentes, acidentes ou atentados, que são sempre uma ameaça presente em grandes eventos internacionais. As autoridades francesas venceram o desafio da segurança com distinção, apesar de um início perturbador, com episódios de sabotagem nas redes ferroviárias, felizmente rapidamente resolvidos. Na passagem de testemunho para Los Angeles 2028, a França merece uma menção honrosa pela organização destes Jogos. Não apenas pela grandiosidade das sessões de abertura e encerramento (controvérsias à parte), mas pelo desenrolar diário de todas as modalidades, muitas delas em cenários históricos e monumentais que o desporto permitiu que fossem “revisitados” pelo mundo inteiro. Chapeau!

E Luís Montenegro lá foi aos Jogos a Paris. Inteiramente de acordo. Quando Portugal está presente em finais desportivas europeias ou mundiais – e como não há bilhete para todos - considero a presença do PM ou mesmo do PR como justificada e relevante para o desporto e para o país. Aplaudo a presença, ao ponto de lhe perdoar o excessivo deslumbramento das suas intervenções. O que já não posso aceitar é a excitação propagandística do seu braço direito e líder parlamentar. Eu sei que está muito calor, que estava no Algarve e tinha o Primeiro-Ministro a seu lado, mas dizer o que disse Hugo Soares, nem com muita compreensão e boa vontade é aceitável. Vê-lo na TV a assegurar que “foi a primeira vez que o PM foi talismã nos Jogos Olímpicos!” Isso significa que Iúri Leitão e Rui Oliveira não ganhavam o ouro sem o empurrão dele? E disse mais ainda que “o PM trouxe com ele uma medalha de ouro e uma de prata”. A sério? De que modalidade? Que eu saiba, o “selfismo” ainda não é modalidade olímpica... E, de qualquer forma, como modalidade não olímpica já temos em Portugal um recordista mundial! Certo? E diz ainda tudo isto, criticando a comunicação social por não ter “amplamente noticiado como devia”. Haja paciência e bom humor.

Exatamente no mesmo dia, a comunicação social esperou pela presença de Luís Montenegro nas cerimónias fúnebres do Presidente do Comité Olímpico, José Manuel Constantino. Esperou em vão, porque não o viu, e assim não pôde noticiar amplamente como seria desejo de Hugo Soares. Eu também não o vi. Mas vi o Senhor Presidente da República que interrompeu as férias no mesmo Algarve para estar no velório e na cerimónia do dia seguinte. Honra lhe seja feita.

2 – Recebi, de um amigo, notícia da organização, pelo Instituto Piaget, do 1.º evento desportivo “phigital” em Portugal, nos dias 13 e 14 de setembro. Apesar de não ser para mim total novidade, fui surfar um pouco online, qual desportista eletrónico, para certificar o sentido de mais um novo conceito do século em que vivemos. Significa nem mais nem menos que (e assim nos chegam as realidades imaginadas por Isaac Asimov!) quaisquer elementos do mundo físico são simulados e repetidos em versão digital, como alternativa para a nossa existência do dia a dia. Ou seja, pode fazer desporto na rua, no bosque ou no ginásio, ou optar por sentar-se a uma mesa, até mesmo só ligar o telefone, e praticar esse mesmo desporto “digitalmente”. O mesmo universo “phigital” que aí está quando se trata de fazer compras, tirar cursos universitários, ter encontros sociais ou românticos, etc. O Instituto organiza este evento nas suas instalações, em parceria com a ISG ESPORTS, empresa especializada em jogos eletrónicos e organização de eventos.

Na sua promoção avulta o facto de esta parceria se afirmar como vanguarda em Portugal do desenvolvimento dos chamados ESports, que se qualificam como fenómeno cultural e desportivo legítimo. O encontro versará, entre outras, um torneio de futsal e de basquetebol, não faltando os respetivos troféus e medalhas. O mote do encontro é: “Vem equipado e traz o teu comando também”. Pois...

Sejamos honestos. Esta nova realidade dos Esports, nada e criada nos Estados Unidos, mais não é que o negócio dos jogos e plataformas eletrónicas, utilizando as múltiplas modalidades desportivas. E está a promover o seu caminho em Portugal, envolvendo grupos parlamentares como o PS ou a IL, e instituições académicas como a Faculdade de Motricidade Humana ou o Instituto Piaget. Ou seja, a promover o lobby adequado, para obter não apenas credibilidade pública, mas também a sua regulamentação. É legítimo? Sim, claro que é. Só espero, de quem de direito, prudência nos passos seguintes.

O que não me convence é a tentativa, direi mesmo intenção aberta, de “confundir” ou equiparar esta atividade com qualquer atividade desportiva, de oficializar a prática desportiva de sofá e consola, de chamar de desportistas e até atletas a jogadores de computador… A consequência mais grave é talvez uma ainda mais acelerada subida nos números da dependência, da adição aos videojogos que é já hoje classificada pela Organização Mundial de Saúde como doença. Dá muito que pensar! Atividade económica com regulação e fiscalidade adequada, vigilância reforçada, também pela sua proximidade com a área das apostas e das compras online - estes são caminhos que têm de ser percorridos, não devendo nunca “confundir-se” com a categoria de atividade desportiva. Muito menos misturar-se, com a melhor das intenções, naturalmente, com instituições de utilidade pública desportiva como são, por exemplo, as federações desportivas.

Depois de uma série experimental em Singapura em 2023, o Comité Olímpico Internacional aprovou no mês passado a realização dos Jogos Olímpicos de ESports, em parceria com o Comité Olímpico da Arábia Saudita. Evento a decorrer nesse mesmo país, de dois em dois anos, por um período de 12 anos, a começar em 2025. O COI quis também amenizar o impacto desta decisão e afastar a suspeita de ter sucumbido ao peso dos dólares, declarando, entre outras coisas, que irá criar uma estrutura específica para os separar do modelo conhecido dos Jogos Olímpicos.

Adivinham-se tempos complexos para o movimento olímpico e o associativismo desportivo internacional, tempos que Portugal e a Europa não podem ignorar. Bem pelo contrário, pois se trata de uma questão muito séria, que afeta antes de mais a saúde pública e as nossas perceções do que é realmente atividade desportiva. Muita reflexão e discussão será aqui necessária, envolvendo todo o sistema desportivo, na sua avaliação e em defesa dos nobres e superiores princípios que guiam a nossa tradição desportiva desde a Antiguidade.

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