Opinião

Dia Mundial da Saúde Mental – vamos falar de trauma organizacional?

Dia Mundial da Saúde Mental – vamos falar de trauma organizacional?

Ana Bispo Ramires

Psicóloga de desporto e performance

A psicóloga do desporto Ana Bispo Ramires fala de um tema que “em boa hora” tem tido cada vez maior espaço para reflexão nos diferentes domínios da sociedade, mas onde no “domínio da ação” ainda há muito por fazer

No dia de hoje celebra-se o “Dia Mundial de Saúde Mental” que, no ano de 2024, eleva o tema da “Saúde Mental no Contexto de Trabalho”.

Este é um tema que em boa hora tem tido cada vez maior espaço para reflexão nos diferentes domínios da sociedade, o que revela o alavancar de um primeiro nível de consciência acerca da importância em dar visibilidade a esta matéria com a maior urgência possível.

Até aqui, fantástico.

As coisas começam a complicar-se no domínio da ação.

Por outras palavras, começámos (enquanto indivíduos e organizações) a integrar iniciativas supostamente associadas à saúde mental e à criação de contextos de segurança psicológica muito mais à procura de “likes” nas redes sociais do que com a preocupação de olhar para este tema com a profundidade que merece.

A Saúde Mental transformou-se num assunto “trendy” que se desdobra em múltiplas ações muito frequentemente fúteis e apenas para cumprir calendário ou dar voz ao “síndrome de bom samaritano” de cumprir uma qualquer “boa ação” – um bom exemplo disto são as múltiplas plataformas online ou de “teleconsulta” que são oferecidas à população ou às empresas onde, do lado de lá da linha temos um psicólogo junior, inexperiente e sem qualquer supervisão a ganhar 10€ a hora, ou então, alguém a ler um script de um call center.

E isto, lamento, não é encarar um tema que se sabe que vai ser o maior desafio das próximas décadas (com todas as conquencias psico-sociais que se podem imaginar) com a seriedade que merece.

É sim, e de forma demasiado frequente, agravar ainda mais a situação porque se não tivermos especialistas devidamente legitimados para o efeito a intervir nesta area, o risco de agravar a situação psicológica de quem procura ajuda é real.

Trauma Organizacional

E dentro das Organizações? O que se assiste?

É verdade, multiplicam-se os casos e pedidos de ajuda no que respeita a ambientes tóxicos, à data, disfarçados de altamente conscientes com a saúde mental dos seus colaboradores... porque gastaram uns trocos em meia dúzia de iniciativas sem qualquer impacto.

Diria que é já quase uma especie de “analfebetismo”, à data de hoje, olharmos para os contextos de desempenho (sejam eles uma sala de aula, um treino desportivo ou uma reunião de trabalho numa organização) e não assumirmos, de uma vez por todas que é da responsabilidade de quem lidera cuidar da integridade física e psicológica das suas equipas.

É quase boçal assistirmos ainda, em muitos contextos onde a tacanhez e falta de literacia emocional prolifera, a agressividade e manipulação serem consideradas um exercício de “boa liderança”.

Não o é. De todo.

É mesmo só um exercício de quem tem uma auto-estima tão danificada que precisa sobressair à conta dos outros. E assim o faz, porque lhe é permitido.

Também assistimos a casos mais polidos deste tipo de ambiente tóxico em que, aparentemente, o ambiente é respeitador e seguro, mas onde a diferença entre o que se diz sobre ser respeitador e seguro (mesmo que se usem as palavras e as frases “certas”) e o que as pessoas sentem no quotidiano é tão grande que faz quem lá está sentir uma espécie de dissonância cognitiva - enorme insegurança na interpretação de estímulos claramente ambivalente e antagónicos - que desregula ainda mais o sistema nervoso (e consequente aumento exponencial de doença psicossomática) por permanecer demasiado tempo em “modo incerteza”.

Seria, por isto, muito importante haver a coragem política, no seio das organizações e sociedade em geral, de monitorizarmos o impacto de tais lideranças no que respeita à resposta psicofisiológica de stress crónico, burnout e doença psicossomática e, inclusive, risco de vida de quem é liderado.

Responsabilizamos as empresas pela contaminação de solos e águas... mas não responsabilizamos pela contaminação e toxicidade emocional? Pela divida que se (agiganta e) contrai na saúde publica com as múltiplas baixas por doença psicossomática?

Demasiado absurdo e de uma ignorância profunda acharmos que “porque não se vê... não existe”.

Sensibilização é um passo fundamental, mas a inconsciência (na melhor das hipóteses) ou (má) intenção precisa ser claramente responsabilizada.

Para quando?

Pequenas Ilhas Azuis

Felizmente, em simultâneo com esta avalanche de “praticas trendy”, assiste-se já a um conjunto de organizações (muitas no setor privado), onde a preocupação é já manifesta através de programas concertados e com a profundida e rigor exigiveis (através da intervenção de profissionais séniores e devidamente especializados) para potenciar ambientes verdadeiramente seguros.

Da formação aos colaboradores no que respeita a competências emocionais e de praticas protetoras de bem estar, à especialização de quem lidera nas competências críticas para poder estar emocionalmente regulado(a) e estruturalmente confiante e investido(a) na criação de contextos seguros onde os colaboradores possam, de facto, não só ter um contexto seguro mas onde possam “florescer” nas suas dimensões pessoais e profissionais, vamos já observando de tudo um pouco.

Estas práticas sim, precisam ser disseminadas pois, atuar com legitimidade e seriedade em Saúde Mental exige este rigor de todas as partes envolvidas.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: ana@anabisporamires.com