Tenho para mim que esclarecer publicamente lances de jogo é mais ou menos como ir a Meca pregar sobre cristianismo: uma verdadeira loucura!
Fala quem anda nisto há quase dez anos.
É claro que haverá sempre uma ou duas pessoas que mostrarão recetividade para ouvir ou perceber. Que mostrarão vontade para tentar encaixar algo que abale a sua crença de base. Mas o grosso da multidão, muito ligada às suas convicções, achará tudo aquilo um ultraje. O mais certo até é hostilizarem quem ouse contrariar a sua visão dos factos.
Não há grande exagero nesta analogia.
Todos sabemos que o futebol tem tanto de belo como de controverso. Um dos seus maiores obstáculos é o da eterna subjetividade: tudo o que acontece nas quatro linhas depende das opções de técnicos, jogadores e árbitros. Depende das suas escolhas a cada momento, em cada disputa. Outro dos seus grandes problemas é o da tal fé, o do amarramento emocional, que retira lucidez para tudo o que não valide o que cada um defende.
É por isso que a carga do atacante nas costas do defesa contrário é legal se acontecer antes do nosso golo, porque se anteceder o deles é "escandalosamente irregular".
É por isso que o vintage "em Inglaterra é bom, porque deixam jogar até ao limite" só vem à tona se for o nosso jogador a virar um dos outros. Quando é o nosso a cair, "é falta clara, o árbitro não marcou porque não quis!!".
É por isso que o braço do nosso defensor raramente faz gesto irregular dentro da sua área, mas o do adversário movimentou-se claramente para tocar na bola, "era penálti óbvio!!"
É por isso que o nosso rapaz nem abriu a boca e levou logo amarelo, mas o outro fez gato-sapato do árbitro e nem cartão levou.
É por isso que a entrada às pernas do nosso atleta era vermelho direto - "o VAR estava a dormir, isto está tudo feito" -, mas a porrada no tornozelo do médio deles "foi tanga, mal lhe tocou".
É por isso que o nosso treinador não estava nada aos saltos, a barafustar já dentro de campo, o da outra equipa é que protestou de braços bem abertos.
E é por isso que os nossos adeptos não fizeram rigorosamente nada para justificar a intervenção policial, os outros hooligans é que causaram aquilo tudo e nada lhes aconteceu.
- Para a maioria, ou a coisa é absolutamente inequívoca ao ponto de anular qualquer argumento contra, ou o mais certo é que o sistema, os árbitros, o vídeo árbitro, o Conselho de Arbitragem, a APAF, a Liga, a Federação, a UEFA, a FIFA, os adversários, a imprensa e os comentadores estejam a conspirar para nos prejudicar e favorecer os rivais.
Por muito que se esclareça (quando o lance é factual) ou fundamente com regras do jogo (quando é subjetivo), nada acalma o coração exaltado de quem se convenceu que o objetivo do mundo é apenas um: derrubar corruptamente o clube do nosso coração.
Hoje são os cinzentos que se queixam, esquecendo que antes foram beneficiados; ontem foram os amarelos que falaram, omitindo o penálti que lhes deu a vitória na semana anterior; amanhã serão os roxos a fazer barulho, sabendo que na jornada seguinte serão bafejados por qualquer decisão errada.
É uma hipocrisia constante, que se repete época após época e que tem contornos de vergonha alheia, tal a facilidade com que algumas memórias sonegam informação desnecessária, preferindo agitar ferozmente aquela que dá mais jeito a cada momento.
Pelo meio, nenhum árbitro presta. Ou são padres, ou são ferraris, ou são lagartos, lampiões ou dragões. Todas as semanas são uma coisa diferente, depende dos jogos que arbitram ou das equipas que entram em campo. Com o VAR é o mesmo: são sempre "os que nos querem fazer a folha" para "levar os outros ao colo".
Dizem que essa parcialidade, que impacta diretamente na vida de muita gente boa pela via da ofensa e da ameaça, é normal. "É só bola, faz parte."
Enquanto ninguém decifrar este fenómeno sociológico raro, a opção de quem procura fazer o caminho da pedagogia deve manter o seu rumo. Se um em cada cem entender a mensagem, missão cumprida.
O objectivo não é retirar imprevisibilidade, discussão ou emoção ao jogo. É apenas afastar a sua brutal irracionalidade.