Opinião

Comentar arbitragem: quando se vive rodeado de moscas, nunca se pode pensar em fabricar mel

Comentar arbitragem: quando se vive rodeado de moscas, nunca se pode pensar em fabricar mel

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

São poucos os adeptos que querem entender uma decisão de um árbitro, conhecer a regra ou estar a par das recomendações. São mais, muito mais, os que só querem conhecer o "veredito" dos especialistas para o atirarem na cara de alguém ou utilizá-lo de forma maliciosa. Mas se não forem ex-árbitros a desempenhar o papel de analisar os árbitros, será sempre alguém que perceba menos da poda

Quando aceitei o desafio de ser comentador de arbitragem, nunca antecipei o desgaste que esta atividade podia causar. 

Se ser árbitro num país culturalmente sui generis já é desafiante, colaborar com os media nessa matéria não fica atrás. Fala quem esteve dos dois lados da barricada.

A análise técnica de lances é, de facto, uma missão ingrata. Cada palavra, letra ou opinião tem que ser bem pensada para não ser mal interpretada. Tem que ser bem medida para não ser injusta (para quem está lá dentro) ou percecionada como corporativa (para quem está cá fora). 

É um equilíbrio delicado, que pressupõe conhecimento técnico, sensibilidade, independência e coerência. 

De resto, criticar o trabalho dos árbitros, tendo sido árbitro, não é algo que caia bem em quem veste essa camisola. Percebo o sentimento, senti-o na pele anos a fio. Mas, a esta distância, consigo perceber que essa visão não faz sentido. 

Convém não esquecer que a função existe há muitos, muitos anos. Quem não se lembra da classe com que os saudosos Carlos Arsénio, Cruz dos Santos, Vítor Correia ou Paulo Paraty comentavam o trabalho dos seus ex-colegas? 

A questão é que daí para cá o futebol cresceu muito, em importância e mediatismo. O jogo tornou-se um verdadeiro acelerador de audiências. Hoje em dia tudo o que lhe diz respeito passou a ser capitalizado por jornais, rádios e televisões. E garanto-vos que se não forem ex-árbitros a desempenhar esse papel, será sempre alguém que garantidamente perceberá menos da poda.  

Claro que há sempre um "mas". E neste caso esse recai sobre um ou outro "especialista" que, de facto, prestam um mau serviço ao futebol por estarem notoriamente desatualizados em termos técnicos e pior, por recorrerem a um tipo de linguagem que exponencia dúvidas, suspeições e ruído exterior. 

Como se isso não bastasse, é também triste constatar que o fim dado à maioria das análises é muitas vezes perverso: são poucos os que querem entender a decisão, conhecer a regra ou estar a par das recomendações; são mais, muito mais, os que apenas querem ler/ouvir o "veredito" para o atirarem na cara dos rivais ou utilizá-lo de forma ainda mais perniciosa.

Foi precisamente por ir percebendo essa tendência que decidi criar o Projeto Kickoff. Foi precisamente por ver que o objetivo deste trabalho estava subvertido que aceitei participar num programa televisivo que mostrava o lado melhor das arbitragens distritais. Foi precisamente para escapar a esse colete de forças que publiquei livros sobre leis de jogo, tornei-me Embaixador da Ética Desportiva, aceitei o convite para ser Membro do Conselho Nacional do Desporto e participei em dezenas de palestras, conferências, formações, colóquios, mesas redondas, aulas, simpósios e grupos de trabalho, focados nas boas práticas no desporto e na necessidade de haver mais respeito por todos os seus agentes. 

Mesmo assim, é dos penáltis que quase todos se lembram. Dos penáltis que assinalei e dos que analisei. 

Moral da história: não vale a pena tentar fazer mel onde vivem moscas.

É também por isso - e porque decidi abraçar outro projeto - que cesso agora estas funções. Confesso que não sentirei saudades das ameaças, dos insultos, das ofensas, da ironia maliciosa nem do enviesamento estratégico dado a cada opinião. Sentirei falta, sim, do trabalho em si (muito desafiante) e da relação que criei com tantos profissionais de topo ao longo destes últimos nove anos.

Espero que quem continue a exercer essas funções - fundamentais no esclarecimento do público - continue a fazê-lo com conhecimento, equidistância e sentido pedagógico, sem poupar nas críticas construtivas que se impuserem. 

São também essas que ajudarão a nossa arbitragem a crescer no sentido certo.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt