Ia jogar (e ganhar) o Mundial com a África do Sul, mas reformou-se devido a concussões: queria “ser capaz de se lembrar do próprio nome”

Editor
Steve Thompson já se esqueceu do nome da mulher e dos quatro filhos mais do que uma vez, noutras deixou o carro ligado durante horas. Em casa, tem numa caixa as fotografias, a condecoração como cavaleiro da ordem britânica e medalha de vencedor do Mundial de 2003, com a Inglaterra; se a memória não as vê, guarda-as também longe da vista. Alix Popham jogou em dois Campeonatos do Mundo com o País de Gales e sabe que um dia privou com Nelson Mandela: tem uma fotografia do momento, mas não se recorda de o ter vivido, nem de quase todos os 33 jogos que fez pela sua seleção. Ambos retirados do râguebi, relatam episódios de irritação súbita, de raiva vinda não sabem bem de onde em ocasiões triviais do quotidiano.
Os dois sofrem de demência, provavelmente também encefalopatia traumática crónica, uma condição neurodegenerativa causada por repetidas pancadas na cabeça que apenas pode ser confirmada post mortem. “Não quero que os meus filhos desistam das suas vidas para cuidarem de mim”, lamentou Thompson à “BBC”. Outrora confessou já ter lidado com pensamentos suicidas. “Comecei a falar com tipos com quem joguei, do meu círculo, e mais de 50% também tem problemas. Muitos foram ao psiquiatra, que lhes diagnosticou uma depressão e lhes receitou comprimidos”, contou Popham, ao “The Guardian”. A memória de cada um do que fizeram no râguebi cinge-se a uma coleção do que lhes contam.
Eles fazem parte de um grupo de 185 antigos jogadores com um processo judicial em curso contra a World Rugby e as federações inglesa e galesa, acusando-as de negligência na proteção de quem joga contra o perigo de concussões, causadas por pancadas dadas na cabeça. O râguebi, desde sempre, é um terreno fértil para que acontecem. Pat Lambie levou muitas e várias provocaram-lhe traumatismos cranianos, em sucessão, quando era um destacado jogador dos springboks, a seleção da África do Sul que se aprontava a ir ao Mundial de 2019. Às tantas, os médicos não lhe “conseguia dizer quais seriam as consequências se sofresse outra pancada na cabeça” e “atiraram a bola” para o seu lado. A decisão que tomou, contou à Tribuna Expresso, foi mais redonda do que oval.
Então com 28 anos, a caminho de ser convocado para um torneio que o seu país conquistaria, retirou-se do râguebi por querer “lembrar-se do seu nome” e “conversar com a família” no futuro. Com repetidas concussões sofridas, Pat Lambie parou. Jogara em dois Mundiais (2011 e 2015) e tinha 56 partidas pelos springboks. Em junho, quando em Portugal com as South Africa Rugby Legends, nem se equipou para jogar amigavelmente contra lendas do râguebi português. Por mais cauteloso que seja e prudente que fossem os adversários, resume o râguebi como “um desporto de contacto, é brutal e é impossível torná-lo completamente seguro”. E Pat Lambie é, provavelmente, o nome mais mediático e o caso do jogador de maior perfil que cedeu (a tempo) ao amolgamento que a modalidade provoca no corpo humano.
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