Nada temam, franceses. São só “15 gajos” da Nova Zelândia equipados de preto “a dançarem” antes de um jogo de râguebi

Editor
São muitos tipos musculados, bestas humanas de força, a esbugalharem os olhos, a esticarem a língua para fora, a fazerem caretas assustadoras; dão chapadas no próprio corpo, batem com os pés na relva, sincronizam a brusquidão dos seus gestos e berros de um idioma incompreensível; compondo este cenário e cobrindo-se todos com vestimenta integralmente negra, é verdade que podem assustar.
Tendo-os a coisa de 10 metros, vociferando gritos guerreiros, minutos antes de um jogo onde o contacto físico não faz cerimónia e senta-se logo à mesa, James Haskell via “15 gajos a dançarem” que lhe davam vontade de “ir para o campo e lutar contra eles”.
Soa a aligeiramento forçado do haka, dança do povo maori, nativo da Nova Zelândia, que os All Blacks fazem, religiosamente, antes de cada encontro. Mas, pensando mesmo como escreve, ou forçando o seu eufemismo interior, James Haskell, um pedregulho de flanqueador que somou 77 jogos pela Inglaterra e defrontou várias vezes a Nova Zelândia, é da opinião que “a não ser que tenhas o coração do tamanho de uma ervilha”, enfrentar o haka “devia motivar-te”.
O ritual maori vence ninguém, as vitórias não começam na dança, nem os All Blacks ganharam 77,1% de todos os jogos que já disputaram devido a um ritual. “Muitas pessoas pensam que é sobre o que estás a fazer aos adversários”, chegou a explicar, mais de uma vez, Kieran Read, o anterior capitão da Nova Zelândia, “mas, na verdade, tem a ver com as sensações que retiras de quem tens à tua frente, atrás de ti ou ao teu lado”.
Os neozelandeses incendeiam-se com os gritos, as caretas e os gestos, que despertam reações. Creem que um paradoxo pode ser eficaz: o haka não dá pontos ou ensaios, mas podem-se inventar estratégias para o contrariar. E há 16 anos, os criativos franceses armaram-se em desafiadores.
Eram os quartos de final do Mundial que também os tinha como anfitriões e cantados os hinos, despertados os motores da emoção, os 15 titulares alinharam-se num abraço ensaiado. Tinham diferentes t-shirts vestidas, cada grupo de cinco jogadores com uma cor da bandeira gaulesa. Com o peito cheio de ar, avançaram até os pés tocarem na linha do meio-campo e sentirem o bafo dos neozelandeses, espantados e surpresos, mas de bom grado hospitaleiros do desplante.
Mais do que aceitado, o ritual maori estava a ser desafiado.
Uma coreografia já cheia de caretas, gestos bruscos e poses batalhadoras intensificou ainda mais as caras dos neozelandeses, que eram fitados de perto e nos olhos pelos franceses. O usual sepulcro que toma conta dos estádios sumiu, o entusiasmo do público fugia por vezes; viam-se inúmeros flashes de câmaras fotográficas a dispararem nas bancadas. “Não nos tínhamos preparado para reagir assim ao haka, mas disseram-nos para agir como se fosse uma guerra, para mostrarmos que estávamos preparados para uma boa batalha”, recordaria Sébastien Chabal, o mais barbudo e cabeludo dos franceses que fitava esfomeado os adversários.
O mamute de jogador confessaria ao “Daily Telegraph”, uma década mais tarde, como a sua pele virava de galinha quando recordava o momento. Os arrepios ainda os terá. Provocado pelo desafio ao ritual que é ele próprio um desafio, os franceses terão perscrutado a cabeça dos neozelandeses em 2007, ganhando-lhes o jogo dos quartos de final e provocando uma comoção nacional no país que espera sempre ganhar todos os Mundiais de râguebi. Foi então “a pior exibição” na história do torneio para os all blacks, lê-se na póstuma crónica do encontro no site da seleção equipada de negro integral.
Não naquele dia, em que divergiram ao vestirem-se com um invulgar cinzento.
Quatro anos mais tarde, no reencontro em Mundiais, a tensão adensava o ar. No Eden Park, em Auckland, as seleções reencontraram-se e a Nova Zelândia reservou o seu haka mais recente e especial, o Kapa O Pango, para o jogo da fase de grupos onde destroçaram os europeus. Semanas depois, na final do torneio, os franceses já tinham outra marosca marinada para ‘brincar’ com as perceções dos adversários: avançaram formados em ‘v’ e de novo no templo do râguebi neozelandês, sozinhos a irem contra o mundo oval que vive canto do mundo, a investirem no mesmo estádio cheio do povo anfitrião que vibrava perante a ousadia.
Os bravos gauleses não pararam a investida na linha do meio-campo, cruzaram-na até quase pisarem os microfones postos na relva, diante dos all blacks, para lhes captarem os gritos do ritual. “A certa altura, estávamos tão perto que alguns queriam beijar os neozelandeses, mas disse-lhes para terem calma”, diria Thierry Dusautoir, o capitão de França, máquina placadora que chegou a fazer 38 num só jogo frente à Nova Zelândia, fixando um recorde.
O número 8 guardou esse momento como “um que recordará para o resto da vida”, quem viu essa final ganha pelos homens de negro também terá inculcado essa memória no coração, mas, na altura, a World Rugby decidiu multar em 2.500 libras a seleção francesa por infringir as regras (elas existem) que os adversários devem respeitar perante um haka - não podem ficar a menos de 10 metros de quem interpreta um “desafio cultural”.
Respeitá-lo, porém, é aceitar o desafio. “A cultura é essa, deveria ser feita e depois passamos ao cerne do jogo. Espero que isto não seja sobrevalorizado”, disse, na altura, o selecionador neozelandês, Darren Shand, elogiando a resposta dos franceses.
A reação das seleções ao haka tem a sua própria vida. Em 2008, os galeses mantiveram-se imóveis, nem uma pestana mexida, mais de um minuto contado depois do ritual terminar, em 2008, obrigando o árbitro a intervir. “Off you go”, ouvia-se do seu microfone perante a intransigência de cada um dos jogadores britânicos em abandonar o seu pedaço de relva, desobedecendo ao dono do apito - uma das tradições do ritual maori faz os neozelandeses aguardarem pela réplica do adversário. Em 1997, o inglês Richard Cockerill deixou-se inflamar, colou a cara a Norm Hewitt, inventou uma provocação e ouviu um companheiro de seleção a tremer da voz: “O que foste tu fazer?”
Haveria um reencontro de França com Nova Zelândia em 2015, ameno e inócuo, os les bleus sensaborões na passagem entre gerações a serem terraplanados (62-13) pelos all blacks nos quartos de final. O anunciado desnível da partida teve ecos no pré-jogo e o ritual foi coreografado, executado e recebido em modo ultraprocessado, sem laivos memoráveis. Esse sétimo jogo entre as seleções nem uma lomba foi na viagem da revalidação do título mundial de quem já conquistou três edições do torneio (a primeira foi em 1987).
É a ‘colisão’ mais frequente na história do Campeonato do Mundo e o balanço é igualmente claro para os titãs do râguebi (cinco vitórias), mesmo que sejam os tombos provocados pelos franceses nas meias-finais de 1997 e nos ‘quartos’ de 2007 a terem espetado as maiores bandeiras no solo das recordações. E pelo atrelado de contragolpes ao haka no passado, é presumível que os anfitriões desta edição tenham uma reação aprontada para o jogo inaugural.
Os invulgarmente tíbios neozelandeses - foram derrotados, sem espinhas (35-7), há duas semanas pela África do Sul - não estarão preocupados com isso. “É a escolha deles, historicamente reagiram, por vezes. Estamos em paz com isso e felizes com os adversários responderem como entenderem”, garantiu Ian Foster, o treinador da seleção que talvez chegue a um Mundial com o menor estatuto de favorito já visto: é 5.ª do ranking e o ano passado perdeu contra Austrália, Argentina e Irlanda (duas vezes).
Agora levarão com os ressurgidos galeses liderados por Antoine Dupont, o médio de formação e provável melhor jogador do mundo da seleção francesa geradora de um entusiasmo adormecido há muito no país. No último par de anos ressuscitou o frenesim de jogo atacante, elétrico e à mão que encantou admiradores na década de 90. “A Nova Zelândia é a equipa mais bonita com a qual sonharam gerações atrás de gerações. É a seleção que criou as maiores impressões na história dos Mundiais”, reconheceu o capitão gaulês.
É ele quem irá liderar os les bleus que o jornal “L'Équipe” juntou, incluindo ele, num abraço composto por vários ícones de seleções do passado para enfrentar jogadores neozelandeses a interpretarem o haka. “A nossa história”, titularam, dois dias antes do jogo de abertura. Porque, sim, é uma história de desafio. “All Bleus” era a manchete da primeira página desta sexta-feira.
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