Râguebi

Os All Blacks nunca tinham perdido um jogo na fase de grupos. Ao décimo Mundial de râguebi, os franceses deram-lhes a conhecer a sensação

Os All Blacks nunca tinham perdido um jogo na fase de grupos. Ao décimo Mundial de râguebi, os franceses deram-lhes a conhecer a sensação
Shaun Botterill/Getty

Os outrora temível, atropeladora e impiedosa Nova Zelândia ainda foi quem ganhou mais metros com a bola na mão e, a atacar, não se pode dizer que falhou, mas foi a anfitriã seleção de França a exibir forças no jogo inaugural do Mundial. Os gauleses é que se agigantaram, venceram (27-13) e deram uma prova de força para os All Blacks se olharem no espelho. No reflexo já não veem uma equipa todo-poderosa

Pontapé e lá foi ela, a bola de saída neozelandesa demorou pouco a ser devolvida pelos franceses, de entre as diligências do râguebi muitas vezes esta é a de gatilho mais rápido. Não que fosse uma batata quente indesejável, mas, dentro da sua área de 22 metros, acabadinhos de inaugurar o Mundial, os anfitriões optaram por um chuto estratégico para a colocar a oval fora do campo. Maldita a hora (e a prudência) em que o fizeram. Da formação alinhada surgiu Rieko Ione a zarpar que nem flecha, uma flecha musculada e bruta, embaladíssimo a receber a bola para com ela furar as entranhas dos anfitriões. Quando o pararam, já o caos se instalara.

Tão cedo, o cataclismo no qual os All Blacks se gostam de espreguiçar estava gerada, quando os gauleses deram por eles já tinham cometido uma falta na beira da sua área de anseio, o malandro Aaron Smith marcara-a freneticamente, deu sinal à Nova Zelândia para carregar e depois uma pausa, um segundo para Beauden Barett ter o tempo que o deixasse olhar rumo ao lado oposto do campo. Com o bisturi que tem no pé direito chutou quase um passe que fez a bola cair à frente do Mark Telea, o ponta marcador do primeiro ensaio do Mundial.

E ainda só havia um minuto e trinta e três segundos de râguebi.

Foi um início relâmpago, com vários trovões sucessivos, nem França ou Nova Zelândia aparentavam pressa mas está-lhes no râguebi serem frenéticos e intensos enquanto jogam a milhares de rotações por segundo. O torneio era inaugurado por dois motores cheios de cilindrada a colidirem com respostas para tudo o que o outro oferecia: com mais bola e maior território preenchido em posse, os All Blacks eram letais no contacto e nos rucks, roubando várias bolas no choque (a ratice Grégory Alldritt), salvo a jogada de início mantinham-se compactos a defender as investidas, algumas magistrais, dos homens de negro que trocavam passes de mão e mão e faziam offloads (libertar a bola quando o adversário já nos placou ou agarrou) como se nada fosse. Nesta arte, Richie Mo’unga dava um show.

Sem mais ensaios, nem verdadeiras chances para tal, a primeira parte roçou o excelente porque eram uns equipados e calçados integralmente de preto a atacarem brilhantemente contra a seleção que parecia um muro humano, cada um dos seus quinze tijolos a cerrar espaços, distribuindo placagens efetivas que muitas vezes faziam os neozelandeses perdem metros no choque. Também muitos pontapés se viram, houve fases de iô-iô em que a bola só viajava entre as áreas de 22 metros, viagens mais vindas da insistência dos gauleses que chutaram 42 vezes só na primeira parte.

Quando as escaramuças ordenadas iam a meio-campo, a bota de Thomas Ramos só falhou uma das penalidades que a França aproveitou sempre ir aos postes. Era o arrière lusodescendente quem se encarregou de punir as distrações dos All Blacks no contacto (9-8 ao intervalo). Mas a rapidez protege as vestes negras e dois minutos e vinte e três segundos havia na segunda parte quando outra ferida aberta na linha francesa, a meio do campo, de novo vinda de um momento morto (formação ordenada), transformou a Nova Zelândia num grupo de gazelas pretas a galoparem pradaria dentro com fúria e num ápice Rieko Ioane pediu a bola vinda de um ruck, atirou-a num passe longo e Mark Telea voou para o seu segundo ensaio.

Serviu de despertador, “allons, enfants de la patrie” e lá foram os franceses, acossados e picados e provocados novamente, sentiram o toque e deixaram-se da prudência mecanizada para soltarem-se das amarras de serem os anfitriões de um Mundial onde são eles, quiçá pela primeira vez, porventura os maiores favoritos a daqui a quase dois meses estarem a entoar o hino pela vitória final. Os filhos da pátria deixaram-se de pruridos, pouparam-se nos pontapés e confiaram no jogo à mão que diligentemente Antoine Dupont filtrou com rapidez. Era o bom dia dos Les Bleus numa noite de verão parisiense.

Letais quando os corpos iam à relva, ladrões de bolas em mãos neozelandeses ou ditadores de faltas por os adversários não as quererem largar quando eram placados, os franceses soltaram-se. Já não insistiam tanto nos pontapés de Thomas Ramos, preferiam usar o cérebro de Mathieu Jalibert a pensar após os rucks e depois de Richie Mo’unga se arremessar contra um ensaio iminente de Damian Penaud e empurrá-lo campo fora. Pouco demorou até ao médio de abertura sapatear de novo, correndo em pézinhos para libertar o ponta gaulês marcar de vez. Logo a seguir, Will Jordan abalroou o luso-francês dos pontapés no ar e o caos virou-se contra a Nova Zelândia.

O cartão amarelo mostrado ao 14 de negro e os subsequentes 10 minutos com menos um jogador só teriam a consequência de três pontos sofridos para a Nova Zelândia, outra penalidade do apelido mais português em campo, mas o dano estava na incubadora. Os All Blacks ruíram já com igualdade numérica, desnorteados e quase a atrapalharem-se uns aos outros, sem controlo cada vez que iam contra a parede francesa. Indisciplinados nas faltas, sem tino a disputar rucks, terminaram o jogo a parecerem, às vezes, baratas tontas sem a bola, sente-se o pecado na ponta dos dedos ao teclar tal coisa mas é a verdade: o último ensaio, já quase nos 80 minutos, teve Richie Mo’unga de costas para os adversários, a abrir os braços ao céu para uma bola que ressaltar na relva, sem ver o lançado Melvyn Jaminet que o atropelou para reclamar a oval.

O 27-13 soa um pouco a mentiroso face aos méritos dos All Blacks em ataque - percorreram 923 metros com bola na mão contra os 621 dos gauleses -, mas a lei do pontapé de Thomas Ramos almofadou a seleção francesa enquanto não soltou as suas próprias amarras, destapando as fragilidades raras, estranhas, inauditas até, dos neozelandeses. Sem bola, já não resistem como dantes. Com ela, não machucam como sempre. Pela primeira vez e ao décimo Mundial, o país que conquistou três edições do torneio perdeu um jogo na fase de grupos. O céu vai cair sobre os antípodas enquanto se abre em França, para a França. E lá vão os enfants de la patrie.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt