Râguebi

As Fiji são o brilharete das seleções de segundo nível no Mundial. Porquê a aversão do râguebi a misturá-las com as melhores nações?

As Ilhas Fiji ganharam à Austrália na fase de grupos do Mundial, por 22-15. Há 69 anos que não venciam essa potência do râguebi.
As Ilhas Fiji ganharam à Austrália na fase de grupos do Mundial, por 22-15. Há 69 anos que não venciam essa potência do râguebi.
Pauline Ballet - World Rugby

A seleção do Pacífico Sul ganhou à gigante Austrália, sendo, para já, é a maior amostra de competitividade que Portugal, Uruguai ou Geórgia, nações que o râguebi define como pertencentes ao Tier 2 da modalidade, também demonstraram no Mundial. Só que é raro estas seleções defrontarem as melhores do planeta porque, simplesmente, não há aberturas no calendário internacional para que tal aconteça. Nem aparente vontade da parte de quem manda em mudar “um problema crónico e histórico”, constata Vasco Uva, antigo capitão da seleção nacional

Fiji é um arquipélago com mais de 300 ilhas onde nascem tipos portentores de uma invulgar mescla que os faz serem um quase protótipo ideal de jogador de râguebi. Entre corpulência, músculo, velocidade e potência, neste país do Pacífico Sul parecem vir ao mundo só indivíduos feitos para canalizarem as valências físicas rumo à oval. Grandes, fortes e rápidos, os fijianos são também uma anomalia probabilística: é inesperado que uma nação com cerca de 920 mil habitantes, onde quase 25% da população vive abaixo do limiar da pobreza, seja deslumbrante a praticar uma modalidade que implica tanta gente (quinze contra quinze) e colisão de corpos (jogar na rua, portanto, não é ideia amiga).

Os fijianos pouco caso fazem das improbabilidades estatísticas. Em 2020, a World Rugby contava cerca de 88 mil praticantes federados no país onde, informalmente, se veem crianças e graúdos a jogarem râguebi na praia, a diário, vibrando com os feitos de seleções como a sua de sevens, conquistadora das últimas duas medalhas olímpicas. Mas não é a variante que opõe sete jogadores de cada lado num campo com 100 metros de comprimento, portanto valorizadora da pujança atlética, que é agora convidada ao baile. Este domingo, a seleção de 15 ganhou (22-15) à Austrália no Mundial e moveu uma hecatombe de surpresa, há 69 anos que não derrotava os conterrâneos dos cangurus e além de histórica, a vitória reflete um problema - os fijianos não tiveram assim tantas oportunidades para o tentarem.

De 1954 para cá, houve só 20 jogos entre eles e se contarmos desde 1987, quando se realizou o primeiro Mundial, apenas quatro dos oito encontros realizados foram partidas que não contavam para uma competição. Há uma explicação, tão óbvia quanto inamovível, para dois países tão bons em râguebi coincidirem poucas vezes em campo: a aversão da modalidade, ou quase celeuma, em misturar seleções excelentes, onde o profissionalismo é um dado adquirido, com equipas a lutarem para serem mais do que boas e melhorarem as suas fundações de barro. No mundo oval, essa divisão distribui os países pelo Tier 1 e o Tier 2, definições redutoras e entre os quais o elevador social é mera história da carochinha. “É um problema crónica e histórico”, resumiu Vasco Uva, antigo capitão da seleção nacional, à Tribuna Expresso.

Ele sentiu nos músculos, nas articulações e em toda a carapaça as dores do abismo entre níveis quando, em 2007, liderou a estreia de Portugal no maior torneio do râguebi, quando calhou aos ‘Lobos’ defrontar a monstruosa Nova Zelândia ou a Escócia.

Esmiuçando, Portugal é hoje a 16.ª seleção do ranking da World Rugby e pertence ao segundo degrau, onde um dos vizinhos são as Fiji, ocupantes da 8.ª posição da hierarquia que é fidedigna e espelha fielmente as valias dos países, ao contrário da classificação mundial da FIFA, no futebol. Outra diferença é que os fijianos, apesar de constarem no top 10, nem por isso têm o hábito de jogarem contra Nova Zelândia (4.ª), África do Sul (2.ª), Argentina (10.ª) ou a já referida Austrália, adversários do hemisfério sul - outro dos rituais ovais é diferenciar assim, geograficamente, as seleções -, nem frente a Irlanda (1.ª), França (3.ª), Inglaterra (6.ª), Escócia (5.ª) ou País de Gales (7.ª), apesar da lista conter 109 países. É quase metade dos 209 membros da FIFA, mas, além das diferenças de qualidade entre seleções vistoriadas a olho nu, o râguebi faz questão de as dividir na prática.

Os uruguaios obrigaram a França a suar bastante (12-27) para ganhar a uma seleção de segundo ou terceiro nível no panorama do râguebi internacional.
David Ramos - World Rugby

É por isso que os olhos e sobrancelhas do mundo ainda se arregalaram com espanto no primeiro jogo das Fiji neste Mundial, os matulões do Pacífico ficaram a uma falha de receção de bola de marcarem o ensaio cantado que lhes daria uma surpreendente vitória sobre os galeses, para depois a surpresa se confirmar diante dos australianos. Ou que se prestem agora vénias a Portugal, derrotado por apenas 28-8 contra Gales quando há uma via láctea a separar as realidades do râguebi nos dois países. “Os resultados destes países comprova que, de facto, competir com equipas do Tier 1 estreita o gap existente”, defende Vasco Uva, ao lembrar que estas “mudanças” levam tempo e os resultados “não se veem no curto-prazo”.

Ou, quiçá, o maior fosso ainda seja o da perceção nas cabeças que pensam a modalidade que esbarra nas amostras que a realidade atual vai dando no campo. “Acho importante que continuemos a desenvolver as nações do Tier 2. Não devemos querer que as seleções do Tier 1 dominem, tens é de querer é surpresas, desde que eu não seja parte delas”, brincou, mas falando a sério, Warren Gatland, o selecionador galês, após o jogo contra um Portugal “fantástico” que “mostrou muita competência” contra a quarta classificada do último Mundial. “Poderíamos chegar a uma situação em que aumentamos o número de seleções no Mundial [de 20] para 24”, sugeriu o treinador, de modo a “ajudar ao crescimento do jogo”.

Ele próprio saberá que essa deve ser a hipótese mais realista de haver mobilidade entre classes râguebísticas.

Porque, como está, a modalidade dedica os meses de julho e novembro aos jogos internacionais, quando as seleções do Tier 1 jogam test matches entre elas e o mesmo acontece com as do Tier 2. É raríssimo um país que more na periferia do top 10 do ranking mundial defrontar nestes períodos alguma dessa dezena de melhores seleções, precisamente o tipo de jogo que faz evoluir jogadores e equipas perante o acréscimo de competitividade. De novo, o exemplo de Portugal: desde 2019, ano do anterior Mundial, os ‘Lobos’ tiveram jogos particulares contra Canadá, Japão, Itália, Argentina XV (espécie de seleção B) e Geórgia, única entre este lote de nações profissionais do segundo escalão do râguebi contra quem os portugueses competiram regularmente neste ciclo de quatro anos, já que os europeus não foram capazes de usufruir de uma mordomia do râguebi que restringe ainda mais o acesso às melhores seleções.

Jogadores da seleção nacional a festejarem o ensaio marcado contra o País de Gales, no Mundial.
CHRISTOPHE SIMON/Getty

Em cada Mundial, os três primeiros classificados dos quatro grupos de cinco países garantem automaticamente a presença para o torneio seguinte, livrando-os de participarem na respetiva qualificação. Ficam a sobrar oito vagas para nações que não defrontarão as melhores seleções da sua região, dificultando o rebentar da bolha do nível competitivo no qual jogam. Ver o Uruguai a fazerem a vida negra aos anfitriões franceses (12-27) e a “poderem queixar-se da sorte”, como disse Warren Gatland, que os achou “extraordinários”, ou o Chile a ter rasgos de espetacularidade (12-42) frente ao Japão, demonstram a mesma tendência que Portugal e as Fiji exibiram: o fosso de qualidade entre as seleções já não terá a profundidade da alergia que a World Rugby parece querer manter a estrear a separação entre o Tier 1 e 2.

A solução a ser congeminada pela entidade será criar duas novas competições, a partir de 2026 e a realizar ano sim, ano não. A primeira vai misturar as seleções do Tier 1 de ambos os hemisférios, acrescentado-lhes dois convidados (fala-se do Japão e das Fiji); a segunda juntará várias do Tier 2 para que haja maior número de jogos entre nações do topo desse escalão, explicou, em junho, a “Reuters”. Ou seja, as poucas seleções emergentes que já têm pouquíssimos encontros contra as melhores - Geórgia, Fiji, Japão ou Tonga - terão ainda menos oportunidades de as defrontar.

Os possíveis remédios para atacar o imbróglio não se cingem a seleções e já são experimentados no contexto de clube, traça Vasco Uva. Existem os Fiji Drua, equipa que “entrou este ano para o Super Rugby”, espécie de Liga dos Campeões do râguebi no hemisfério sul. Na América do Sul, Chile e Uruguai têm o seu próprio formato da competição e “Portugal joga com o Lusitanos na Rugby Europe Super Cup”. Ter jogadores a esculpirem o seu nível dos clubes “deve ser o caminho” porque “só jogando com os melhores se consegue ser melhor”. E não sendo possível aplicar essa máxima nas seleções, que tal seja executado de outras maneiras.

Fiji Drua entrou este ano para o Super Rugby, Chile e Uruguai tem o Super Rugby America e Portugal joga o com os Lusitanos na Rugby Europe Super Cup. Este deve ser o caminho. Só jogando com os melhores, se consegue ser melhor, augura o centurião português (mais de 100 internacionalizações), já retirado. Carregando na mesma tecla, Vasco Uva apela à paciência pelo progresso lento, mas seguro: “Veja-se o caso da Italia. Esteve muitos anos para entrar no Seis Nações e, quando finalmente conseguiu, teve alguns anos para ter bons resultados. Mas agora consegue ser mais regular e ainda o ano passado ganhou à Austrália. A Geórgia está a tentar há muitos anos e ainda nao teve oportunidade. Mas, com o râguebi que tem estado a praticar, poderá estar mais perto.”

O futuro, diz ele, passará por aí. Aos poucos, os resultados aparecerão para serem aliados, como os deste Mundial, e empurrarem a World Rugby a “chegar à conclusão que esse passo tem de ser dado para que o râguebi continue a ser um exemplo para todos os outros desportos”.

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