A bola (oval) foi ter com a cabeça (redonda) do pilar Joe Marler e saiu quase diretamente para as mãos de Courtney Lawes que, sem hesitar, marcou e assim aumentou a vantagem da Inglaterra sobre o Japão, cujo resultado final se fixaria em 34-12, no mais recente jogo que os rapazes do emblema da Rosa fizeram no Mundial de râguebi, que se realiza em França.
A situação por si já é insólita, sabendo nós que uma bola oval não tem propriamente a melhor forma para ser cabeceada e que esta é uma modalidade que se pratica com as mãos. Mas, não só a bola foi ter acidentalmente com a cabeça de Marler, como as regras são claras. No râguebi, se a bola for para a frente com as mãos ou o braço de um jogador, o adversário recebe um scrum, ou seja, há um reinício da jogada. No entanto, se a bola sair de qualquer outra parte do corpo, incluindo a cabeça ou a cara, a jogada é legal. Por isso, aquela assistência foi autorizada.
O vídeo do inusitado momento, que já foi revisto milhares de vezes, seria um simples meme se o seu protagonista não fosse Joe Marler. Tudo parece ganhar outra vida quando se trata do pilar de 33 anos, que joga nos Harlequins da Premiership.
Três vezes vencedor das Seis Nações com a Inglaterra, além da aparência de brutamontes que veste os seus 120kg assentes em 1.83 metros, Marler raramente consegue manter a boca calada e tem (quase) sempre o coração ao pé desta. Facto que, aliás, já lhe trouxe alguns dissabores.
Logo após o jogo, Marler brincou, afirmando que no aquecimento tinha trabalhado aquela cabeçada e que se inspirou na vitória do Brighton sobre o Manchester United por 3-1, em Old Trafford. Todos sabem que Marler adora futebol, e quando um jornalista francês, da zona mista, perguntou-lhe se ele era o Zidane do râguebi, referindo-se naturalmente aos dois golos de cabeça que Zidane marcou na final do Mundial de 1998, o pilar inglês respondeu: “Se eu sou o novo…?” Não, porque ele bateu nas pessoas, não nas bolas”. Era óbvia a referência à cabeçada de ‘Zizou’ em Marco Materrazi, na final do Mundial, em 2006.
Castigos atrás de castigos
Nascido em Eastbourne, Joe Marler começou a praticar râguebi com 11 anos e desde cedo mostrou não só capacidades atléticas para a modalidade, como uma postura de bad boy, que adora provocar os outros e é (aparentemente) imune a tudo e a todos.
Ao longo da carreira sofreu vários castigos que o afastaram do campo por largos meses, pagou multas, foi chamado de “palhaço” por colegas, mas o pilar inglês parece não ter emenda porque foi repetindo os mesmos erros. Senão, vejamos o resumo feito pelo “MailOnline”: Em 2009, antes de se tornar um profissional sénior, foi expulso pela equipa de sub-20 da Inglaterra num encontro com o Japão; em abril e setembro de 2011, a jogar pelo Harlequins, recebeu proibições de duas e três semanas, respetivamente, por ter lutado e agredido um adversário da Premiership; em março de 2016, quatro anos depois de ter iniciado a sua carreira de jogador de testes com a Inglaterra, Marler causou indignação ao chamar ao adversário do País de Gales, Samson Lee, “rapaz cigano” num jogo das Seis Nações. Foi banido por duas semanas e multado em 20.000 libras [à volta de de €23.000]; em abril do mesmo ano, no seu primeiro jogo de regresso, após a expulsão de Lee, Marler deu um pontapé na cabeça de Arnaud Héguy, do Grenoble, numa meia-final da European Challenge Cup. Foi banido por mais duas semanas.
Ainda em junho de 2016 referiu-se inapropriadamente ao ex-treinador da Austrália, Bob Dwyer, no Twitter e recebeu uma advertência formal dos seus chefes do râguebi inglês. Em setembro e outubro de 2017, esguichou água no seu companheiro de equipa de Inglaterra, James Haskell, num confronto entre o Harlequins e o Wasps. Não foi banido nessa ocasião, mas foi um mês mais tarde por agredir Will Rowlands. Em janeiro de 2018, outra proibição, desta vez por seis semanas.
O caso que mais fez correr tinta e circular imagens na internet, aconteceu em 2020 quando Marler agarrou nos testículos de Alun Wyn Jones no encontro das Seis Nações entre a Inglaterra e o País de Gales, em Twickenham. Resultado: mais 10 semanas parado. Em dezembro de 2022, foi considerado culpado de conduta prejudicial ao râguebi depois de ter insultado a mãe do avançado Jake Heenan, do Bristol, que estava hospitalizada, chamando-lhe “p*** de merda”. De nada lhe serviu dizer que não sabia que a senhora estava no hospital. Foi banido por um período inicial de duas semanas e suspenso por mais quatro por um painel disciplinar da Federação Inglesa de Râguebi. Sim, porque no râguebi os valores não são palavras vazias, nem são ignorados.
Depois da última polémica, o próprio Joe Marler admitiu que até a sua mulher o rotulou de idiota.
A depressão que acalmou Marler. Será?
O ponto mais baixo de Joe Marler aconteceu, porém, dentro da sua própria casa, quando durante uma discussão com a sua mulher, grávida de sete meses do seu terceiro filho, teve um surto e perdeu completamente a cabeça. Estávamos no início de 2019. Durante uma discussão com Daisy, o jogador passou-se. “Virei a cozinha e dei um murro numa das portas. Depois, entrei na carrinha e fui-me embora. Não fazia ideia para onde ia ou o que estava a fazer. Mas foi um ponto de viragem enorme porque foi a maior vergonha que alguma vez tive. Já não reconhecia quem eu era. Passados 30 minutos, voltei porque estava a ficar sem tudo o que era bom na minha vida”, contou ao “The Guardian”.
No dia seguinte, após um jogo pelos Harlequins contra o Saracens, Joe Marler foi-se abaixo e chorou no balneário, contrariando a falsa imagem de durão que tinha criado. Incentivado pelo médico do clube, foi procurar a ajuda de um psiquiatra, foi medicado e fez uma “viagem” para descobrir “o que estava acontecer”. Saiu do cenário internacional e dedicou-se a passar mais tempo com a mulher e os três filhos.
“Sendo o râguebi um desporto difícil, intransigente e de natureza física, tens dominar o adversário de todas as maneiras que puderes, legalmente: fisicamente, mentalmente, taticamente, tens que invadir o espaço deles. É tudo uma questão de ser o macho alfa. É tudo uma questão de intimidar a oposição. Como ambiente, é isso que me é exigido em campo. Então é muito difícil não fazer isso fora do campo, depois de estar nesse ambiente em que é tudo sobre ser o maior da sala”, explicou Joe Marler, numa outra entrevista.
Alguma coisa parece ter mudado em Joe Marler desde que lhe foi diagnosticada a depressão. Ao participar no documentário da Sky, “Big Boys Don't Cry”, onde falou abertamente sobre as suas experiências com a depressão, e foi apresentado à natação em águas frias Marler, passou a nadar todos os domingos no mar gelado que banha Brighton. “Andar a boiar no mar frio é provavelmente a coisa mais importante que tento fazer todas as semanas", diz. Passou também a apresentar um podcast de sucesso, o “The Joe Marler Show”, que apresenta em conjunto com Tom Fordyce, antigo jornalista desportivo da BBC. Desde o seu lançamento em 2020, o podcast já teve mais de cinco milhões de downloads. A dupla conversa com todo o tipo de convidados sobre os seus empregos, as suas vidas e histórias. Não ter receio de expor os nossos sentimentos tornou-se numa espécie de bandeira do pilar inglês. Aparentemente falar sobre a sua história e incentivar outros a fazê-lo e a assumir as suas fragilidades parece ter acalmado Marler, num certo sentido.
Porém, Joe Marler continua a ser o falso durão, que gosta de provocar os adversários e tem um sentido de humor peculiar, sempre ponto a dar alfinetadas aqui e ali. A diferença é que após ser-lhe diagnosticada a depressão parece ter ganhado força para falar abertamente sobre os seus sentimentos, sem receio do que os colegas ou os outros vão achar dessa “vulnerabilidade”.