Râguebi

Os georgianos são os ‘Lelos’ por uma razão: um jogo sem regras onde anda tudo à bulha por uma bola de 16kg benzida com vinho

Os georgianos são os ‘Lelos’ por uma razão: um jogo sem regras onde anda tudo à bulha por uma bola de 16kg benzida com vinho
VANO SHLAMOV/Getty

No sábado, Portugal vai defrontar pela 26.ª vez a seleção da Geórgia no segundo jogo do Mundial de râguebi. E pela 26.ª vez se ouvirá a alcunha dada aos georgianos vinda do ‘Lelo Burti’, um jogo ancestral, hoje só visto numa aldeia do país, onde um padre ortodoxo atira uma bola benzida a vinho para o meio de uma multidão que se empurra até a equipa vencedora poder depositar o objeto no cemitério, junto à campa de alguém

O retrato do cenário tem pinceladas de medieval, a crueza é evidente: a população de uma aldeia reúne-se diante de um padre ortodoxo, tem farta barba, está vestido de batina negra e chapéu da mesma cor, que batiza com vinho uma bola de couro, cozida à mão e recheada de areia; faz um esforço para a erguer com os dois braços e, com um berro para ajudar ao ímpeto, arremessa o objeto de 16 quilos para o meio de uma pequena multidão. Quando a gravidade faz o seu trabalho e a bola é engolida pelos aldeões, a cena vira quase de pancadaria, de completo caos enquanto um moche de pessoas se empurra sem aparente sentido ao longo de uma rua.

A cena repete-se anualmente em Shukhuti, uma aldeia a oeste da Geórgia, já só lá, a cada domingo da Páscoa Ortodoxa. Dois séculos atrás, a prática era comum em quase todo o país. Chama-se Lelo Burti, nome da mistura entre desporto e tradição, um cruzamento de folclore com traços de quase violência. Se um desconhecedor freguês, vindo de fora, visitasse a aldeia nesse dia primaveril pensaria estar perante uma batalha campal de homens em escaramuça. As imagens sugerem-no. Mas não, os georgianos bons de râguebi são apelidados de ‘Lelos’ por nada de depreciativo, antes por culpa deste costume que enrijece corpos com uma única regra: ganha quem levar a dita bola para lá do limite de um riacho.

A disputa é entre o lado norte e o sul de Shukhuti e tudo começa no centro da aldeia, onde Saga, o padre da aldeia e antigo praticante de luta greco-romana, atira o pesado objeto para o meio da maralha. Chega o dia, diz umas palavras que honrem o evento e convida os aldeões a com ele beberem vinho do invólucro de couro que será a bola. Só depois será recheada com areia (e um pouco de néctar dos deuses) para o jogo.

É pesada com uma balança, os 16 quilos têm de ser exatos. O número de participantes não tem limite, tantos quanto os que quiserem podem juntar-se à bulha de gritos, empurrões e agarrões onde alguém lá para o meio terá a bola nas mãos. “Eles são da aldeia, são familiares, muitos até podem ser irmãos, com um a viver no lado norte e outro no sul, mas competem um contra o outro. Quanto às regras, não há regras, é uma aldeia dividida ao meio a lutar e na luta é onde se expressa o espírito do homem georgiano, é assim que demonstra o quão forte e bravo é”, explicou o padre a uma reportagem do “Rugby Pass”, que levou Mike McCarthy, um ex-jogador internacional pela Irlanda, aos confins da Geórgia para experimentar o costume.

O tiro de partida é literal. Ouve-se o disparo de uma arma e a molhada começa, homens e mais homens encavalitam-se, cedo se perde a bola de vista no centro da aldeia de Shukhuti. Os georgianos são ‘Lelos’ no campo de râguebi onde as regras imperam porque têm neste jogo anárquico e brutal um “património não material”, assim reconhecido pelo governo do país. “Crescemos a ver os nossos pais e tios jogarem. Adequa-se ao caráter do homem georgiano, que está sempre pronto para a batalha”, louvou Lasha Azaladze, um dos habitantes, quando o “New York Times” visitou a aldeia, em 2019. Nesse ano, o jogo, iniciado sempre às 17h, durou um par de horas. Há vezes em que se despacha em 20 minutos, noutras demora até depois do sol adormecer.

A largada é do centro de Shukhuti, equidistante de dois riachos que sinalizam a espécie de baliza para cada lado da aldeia. A ideia é capturar a bola, alcançar o respetivo caudal de água e atirá-la lá para dentro, só aí a vitória é celebrada. Durante a disputa bebe-se vinho e Chacha, um licor georgiano, comem-se iguarias e fazem-se pausas. A multidão ultrapassa a centena e há uma ambulância que sempre acompanha o ‘Lelo Burti’ - já aconteceram fraturas, queixas de falta de ar e mazelas vindas do ensanduichar de corpos. Em 2017, um homem faleceu devido a uma paragem cardiorrespiratória quando tinha a bola, o ano passado aconteceu outra morte.

Mulheres e crianças também podem jogar, mas não são autorizadas a estar no coração do moche, onde o perigo é maior. Este ano, o antigo jogador da Irlanda que lá foi com o “Rugby Pass” viu a molhada a parir georgianos de costelas fraturadas e dedos partidos. “Vi coisas de um caos absoluto. É literalmente uma formação ordenada que dura mais de uma hora”, descreveu Mike McCarthy. Quando o ritual que atesta a rijeza do homem georgiano termina, feitas celebrações e dados os abraços entre aldeões, o lado vencedora caminho rumo ao cemitério de Shukhuti.

A peregrinação é mandatória e a tradição jaz à vista de todos. Encostadas às lápides de muitas urnas estão bolas de Lelo Burtis passados, lá depositadas como oferenda em memória de alguém perdido nas famílias de quem ganhou o jogo. Em 2023, a bola descansou junto à campa de um homem que morreu em 2022. Há pedaços de couro de jogos feitos há décadas que estão no mesmo sítio, intocados. “A bola transforma-se uma relíquia, num símbolo de vitória. É por isso que damos o nosso melhor. Quem me dera não estar numa situação em que o meu irmão precisa de uma bola”, lamentou Vakhtang Torotadze, ao recordar quem pereceu em 2017.

‘Lelos’ para aqui, ‘Lelos’ para ali é uma constante a cada reencontro da seleção nacional com a Geórgia num campo de râguebi. No sábado será a 26.ª vez que Portugal a defrontará, a primeira num Mundial. Outro costume bem menos ancestral é temer a pujança física e a armadura dos corpos dos georgianos que suplantam as dos portugueses, se comparados os jogadores. É o legado de uma herança que já só uma aldeia rural do país faz por manter viva.

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