Nuno Sousa Guedes e a sua história na seleção com pontapés aos postes no último segundo de Mundiais

Editor
Nuno Sousa Guedes está à direita do campo, todo ele de rastos, o corpo extenuado por esforços constantes, fustigado por tanta placagem e pancada, pelas sucessivas corridas e os tantos arranques. O jogo está parado, pode dizer-se que terminou mesmo com um sibilado em falta, o apito só aguarda pelo último gesto do português. Ele dá uns passo, deixa ressaltar a bola, balança a perna direita atrás, lá vai o pontapé e a oval vai em direção aos poste, mas foge-lhes malandramente. Nuno fixa-se no alvo por um segundo, deixa os olhos no alvo que não alcançou antes de um companheiro de seleção o amparar com um abraço.
A descrição dispensaria ajustes para se aplicar ao sucedido no sábado, em Toulouse, na derradeira espreguiçadela do segundo jogo de Portugal no Campeonato do Mundo de râguebi, quando a vitória pendeu na chuteira de Nuno Sousa Guedes. E pode parecer, mas não, o parágrafo anterior é matreiro e descreve uma experiência pela qual um dos melhores jogadores portugueses desta geração viveu em 2015. Salvo o pormenor de ele deixar a bola cair, o momento é quase siamês.
Era ele um recém-adulto, ainda a demonstrar a sua aptidão para fintas de corpo e trocas de pés, quando foi com a seleção a um Mundial de sevens e se viu com a oportunidade de martelar história no mural oval do país. É justo lembrar que a ocasião seria maior: há oito anos, Nuno Sousa Guedes marcou um ensaio nos últimos segundos à Nova Zelândia, os monstruosos All Blacks, os tipos mais ditatoriais no râguebi de quem se espera que ganhem tudo, contra quem jamais Portugal tinha estado sequer perto de ganhar.
Ele tinha 20 anos, já ostentava o seu longo cabelo loiro e enganava bisontes de músculos em campo com os seus dummies, aqueles bater de pé de quem corre numa direção e de repente muda, arrancando para outra. “Até me falharam as pernas, mas, felizmente, o braço ainda lá chegou”, disse, então, ao “Observador” acerca do ensaio que marcou a uns 10 segundos do final para ter de arcar com uma responsabilidade vestida com um agasalho semelhante ao deste sábado: de o último ato de uma partida de um Mundial de râguebi ficar dependente de um pontapé seu aos postes.
Nos sevens, variante onde sete jogadores correm contra outros sete num campo com as mesmas dimensões para o objetivo parecer ser quem acaba mais esgotado, as pilhas de Nuno Sousa Guedes estavam vazias. “Apenas consegui cair em mim e começar a pensar quando o árbitro olhou para mim e disse que faltavam 10 segundos para chutar”, contou. Se ele acertasse o seu pontapé de ressalto (deixar a bola cair e chutá-la logo após ressaltar na relva), Portugal ganharia à Nova Zelândia e chocaria o mundo. Ele estava “um bocado nervoso”, imensuravelmente cansado e a bola, teimosa, curvou o seu efeito para longe do alvo.
A seleção ficou bordada a ouro histórico na mesma, um empate não é uma vitória embora o contexto das diferenças entre os países aproxime os resultados. “Claro que tive pressão e nunca mais me vou esquecer de ter falhado este pontapé”, admitiu o jogador, acautelando-se com uma aprendizagem para dias vindouros: “É com os erros que se aprende e da próxima espero lá estar para não falhar.” Oito anos passaram por ele e a responsabilidade voltou a tocar-lhe à campainha.
No sábado, no desfecho de um esforço titânico dos ‘Lobos’ para regressarem na segunda parte à disputa com a Geórgia, velha conhecida de tantas partidas, Portugal teve uma penalidade no derradeiro segundo. O resultado estava empatado a 18 pontos, todas as almas em Toulouse sabiam que a tentativa aos postes seria a machadada no encontro por onde quer que a bola passasse. Com treinos, horas e prática nos bastidores para estes momentos, Nuno Sousa Guedes estava lá e assumiu a tectónica responsabilidade - tinha no seu pé a primeira vitória da história em Mundiais.
O portuense ajeitou a bola no cone, pô-la na sua disposição preferida, olhou para os postes, estava igualmente encostado à lateral direita, mas não tanto, e perto da linha de 22 metros. Um pouco curvado sobre ele próprio, na pose tão do râguebi que tantos chutadores assumem, parecendo sentados em cadeiras imaginárias, Nuno Sousa Guedes fitou os postes um par de vezes, partiu para a bola e quando ela saiu do seu pé direito aprontou-se a ser malandra como a sua prima de há oito anos: afastou agora para a esquerda, o efeito a levá-la cerca de um metro para lá do poste esquerdo. A cara atónita do jogador português, desconsolado, também era porventura o espelho de uma memória.
O cliché de “só falha quem lá está” é prosaico porque, de facto, é uma verdade. Em dois momentos de aperto do râguebi português, com o desporto nacional empoleirado na história, Nuno Sousa Guedes assumiu a responsabilidade hercúlea de chutar bolas para a vitória. Um dos melhores jogadores portugueses desta e da anterior geração, provavelmente o mais espetacular quando a tarefa é evadir placagens, chegou-se à frente e falhou, mas isso quiçá fê-lo ser ainda melhor. Ele próprio o disse: é com os erros que se aprende.
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