Um cartão amarelo precipitou o sorriso da mesma cor, mas a réplica dos lobos contra a Austrália ficará na lembrança
Guillaume Horcajuelo
Os portugueses colocaram-se em vantagem logo aos 13’, por 7-3, mas os australianos aproveitaram um cartão amarelo a Pedro Bettencourt para cavar as diferenças nesta terceira jornada do Campeonato do Mundo de râguebi. Depois do empate contra a Geórgia, Portugal demonstrou que sabe competir contra verdadeiros monstros da modalidade (14-34), lamentando aqui e ali alguns erros que poderiam ter aproximado os números do marcador. Seguem-se as Fiji, no próximo domingo
Em cada uivo, um sonhador. A generosidade entre homens num campo de râguebi emociona, mesmo entre encontrões faiscantes, corridas e saltos delirantes e ainda placagens ferozes. Depois da quase, quase entrada para o paraíso contra a Geórgia, os lobos entraram em campo para olhar nos olhos os questionantes e já eliminados australianos, campeões do mundo em 1991 e 1999, finalistas em 2015, cheios de dúvidas em 2023.
Alguns dos aussies treinados por Eddie Jones pareciam autênticos prédios com pernas e cedo começaram a tratar do assunto, por Ben Donaldson, um senhor com um pé afinado com o giz mais fino. Talvez não esperassem a arrojada réplica dos portugueses, que fizeram pouco depois o primeiro de três ensaios nesta tarde em Saint-Étienne. Pedro Bettencourt foi o pioneiro. A festa foi rija. As boas notícias para a seleção orientada por Patrice Lagisquet continuaram: Samuel Marques, o arisco e atrevido Samuel Marques, tomou conta da conversão e colocou o resultado em 7-3. Memorável marcador. A notícia desavinda veio depois, com o cartão amarelo a Bettencourt, por um ombro na cara de um adversário, deixando Portugal com 14 jogadores durante 10 minutos.
Donaldson até falhou um penálti de seguida, mas os australianos aproveitaram este período em superioridade numérica para criar um fosso importante. Richie Arnold começou o festival, beneficiando da ação de Rob Valentini, um atleta em forma de prego que furou sem piedade uma linha corajosa. David Perecki, o capitão, não demorou a celebrar mais um ensaio. Pelo meio, Donaldson ia metendo a bola onde tinha de meter, amealhando dois pontos de cada vez. Angus Bell, de 22 anos, ia confirmando que é uma coqueluche para seguir no râguebi australiano. E foi ele mesmo que fez o terceiro ensaio, colocando o resultado em 22-7, que subiu para 24-7 quando Donaldson tratou de executar o seu ofício prodigioso e meticuloso.
Angus Bell, de 22 anos, assinou o terceiro ensaio para os australianos
Guillaume Horcajuelo
O VAR, onde estava Joy Neville, a primeira árbitra a participar num Campeonato do Mundo, cancelou um ensaio a Nicolas Martins, por este pisar sem pisar a linha que delimita o campo, separando o que é relevante do que é irrelevante. A angústia escorreu das carapaças dos lobos. Aqueles 10 minutos sem Bettencourt foram drásticos e estes pontos teriam valido como a mais preciosa poção de energia. Com 15 jogadores, os portugueses voltaram a competir de igual para igual e não sofreram qualquer ponto até ao intervalo.
Ainda a lamber as feridas do pontapé falhado contra a Geórgia no derradeiro segundo, Nuno Sousa Guedes foi atropelado por Marika Korobeite, facilmente confundido com uma locomotiva com coração, logo no arranque do segundo tempo. A dor terá mudado de sítio, denunciava o esgar no rosto do português. Mas esta gente levanta-se sempre. Em cada uivo, um sonhador, certo? E a renovação mental revela-se também em virtuosos momentos assim:
As corridas serpenteantes de Raffaele Storti satisfazem aqueles que cravam os olhos nele. Há menos espaço e oportunidades para esses momentos contra gente como os wallabies, mas quando aconteceram inflamaram os muitos portugueses no estádio.
A Austrália continuou com os seus ensaios, já numa modalidade quase imparável. Fraser McReight foi o obreiro. Na bancada, viam-se sorrisos e cangurus insufláveis. Gente feliz. Portugal respondeu por Mike Tadjer, mas o VAR deliberou que o português perdeu o contacto com a bola. Foi mais uma pancada no orgulho dos portugueses, que pouco depois beneficiariam de muito tempo contra 13 jogadores. Aqui, Portugal rondou e rondou e rondou o ensaio e os terrenos que prometem história, mas os australianos, tão cansados como a rapaziada da nossa terra, iam-se defendendo como podiam.
A festa dos portugueses em Saint-Étienne
Guillaume Horcajuelo
Mas a resistência aussie quebrou e o ensaio chegou mesmo, por Rafael Simões. Samuel Marques voltou a cuidar da conversão e aproximou os números do marcador: 29-14. Korobeite desfez a aproximação: 34-14. Donaldson, como já fizera antes, voltou a falhar o pontapé, concedendo uma folga a injustiças morais.
O cansaço dos corpos, o sangue que escorre da esquina de uma testa e o arfar eterno, confere mais dignidade a um jogo físico que também mete questões de alma. Somaram-se turnovers, placagens (foram 121 portuguesas contra 143 dos aussies), correrias várias, uma delas supersónica de Manuel Cardoso Pinto. A bola, oval e cheia de histórias para contar, escapava-se com mais facilidade das mãos rudes que a acariciam.
A vitória ainda está por pingar para o lado português, que soma uma derrota (País de Gales) e um empate (Geórgia) na Pool C, mas esta forma de encarar o jogo só pode trazer amanhãs mais melosos. Alguns erros de decisão e aqueles ensaios que podiam ter sido e não foram quase transformaram esta contenda em algo histórico, quase pertencente à mitologia, tal foi a promessa de proximidade entre dois mundos tão diferentes. Portugal está eliminado do Mundial de râguebi. Mas a vida continua. E continua já, depois de muito descanso e do tratamento de mazelas, no dia 8, contra as Fiji.