Não me recordo porque carga d'água os meus pais, alérgicos crónicos a assistirem a desporto que não envolvesse rodas, permitiam que, todos os meses, a Sport TV lhes desse uma trinca. Ainda eram os bons e velhos tempos dos religiosos domingos de missa da Fórmula 1, aberta ao público na RTP, o mundial de ralis passava na Eurosport, não havia justificação.
Mas, se hoje pouco me importo com isso, na altura, com 15 anos, creio que nem um pouco arreliado me sentia por ter, na sala, quase todos os dias, o Mundial a dar do râguebi que ainda jogava, ainda por cima vindo lá de bem longe, com os horários trocados da Austrália que tornavam mais provável ter a casa vazia e a televisão cheia só para mim.
Neste dia acordei cedo, nem 09h deviam ser. A final era às 20h nos antípodas e não queria perder um pontapé dado pelo inglês, o loiro, o canhoto que ouvia amigos da escola a menorizar um pouco.
Ele está sempre a chutar, queixavam-se. Dele já ouvira falar bem antes e, assim que o Mundial arrancou, tentei colar-me fielmente aos jogos da Inglaterra, desde que não atrapalhassem o fascínio curioso pela Austrália e a Nova Zelândia, ilhas escondidas no candeeiro-globo lá de casa.
De facto, o inglês imutável na cara e da emotividade de um robô chutou os ingleses até à final de Sydney, que iam jogar contra a outrora ilha colónia para onde enviavam, no fundo, os restos indesejados no centro do império. E, nessa final, lembro-me de já admirar o Jonny Wilkinson à brava.
Marcou 15 pontos no jogo que não foi particularmente bonito. Houve muitas faltas, muitos apitos, muitas interrupções num jogo já perro por si só. Todos os pontos de Wilkinson entraram ao pontapé, com a certeza de uma máquina de fábrica que todos os dias executa o mesmo ao clique de um botão. A cada penalidade, ele afastava-se, sentava-se na cadeira imaginária, unia as mãos, olhava para os postes e chutava.
O último dos pontapés foi um drop à entrada dos 22 metros que bateu com o pé direito. E disto recordo-me bem, de ficar parvo e de pular do sofá. Que melhor prova há da rigidez de um jogador do que, na final do Mundial que está empatada, melhor, no último minuto do prolongamento da final de um Mundial, chutar aos postes com o pé contrário. Nem foi o facto de ter acertado, foi o ter sequer tentado.
Nesse instante, Jonny Wilkinson deixou de ser uma espécie de Beckham do râguebi, como o via na cabeça por antes não o ter visto muitas vezes, pela televisão. O inglês era e continuou a ser, talvez, o melhor chutador que tocou na oval, e mesmo não sendo o chá de criatividade o seu preferido, era um feroz placador e dos médios de abertura mais viáveis a defender que já houve.
Para um puto de 15 anos que ainda se dividia entre o futebol e o râguebi, toldado pelo entusiasmo, vendo-as, mas não ligando às diferenças na aptidão que tinha mais para um e menos para o outro, esta final - e todo o Mundial - foi espetacular.
Resultado: Austrália 17-20 Inglaterra, a 22 de novembro de 2003, na final do Mundial de râguebi.
Marcadores: Ensaio de Tuqiri e quatro penalidades de Flatley, para a Austrália. Ensaio de Robinson, quatro penalidades e um pontapé de ressalto de Wilkinson, para a Inglaterra.
Inglaterra: J. Lewsey, J. Robinson, W. Greenwood, M. Tindall, B. Cohen; J. Wilkinson, M. Dawson; T. Woodman, S. Thompson, P. Vickery; M. Johnson (capitão), B. Kay; R. Hill, N. Back, L Dallaglio. Suplentes: D. West, J. Leonard, M. Corry, L. Moody, K. Bracken, M. Catt, I. Balshaw.
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