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Os árbitros chegaram à casa do futebol português

Os árbitros chegaram à casa do futebol português
TIAGO MIRANDA

Os juízes de elite da região de Lisboa tornaram-se, esta época, na “30.ª seleção” que treina na Cidade do Futebol. Fomos ver um treino dos árbitros que estão no projeto de profissionalização da Federação Portuguesa de Futebol, cujo objetivo é abrir a arbitragem ao exterior, comunicando mais

Os árbitros chegaram à casa do futebol português

Tiago Miranda

Fotojornalista

“Costumo dizer lá por casa que prefiro fazer este caminho do que viver aqui na confusão de Lisboa [risos]. Dá tempo para ouvir uns podcasts, colocar as ideias em dia.” O árbitro internacional António Nobre vive em Óbidos. Praticamente todos os dias faz-se à estrada durante cerca de uma hora para treinar em conjunto com outros juízes de elite da zona de Lisboa. Até podia treinar mais perto de onde vive, no Oeste, mas acredita que “faz sentido” trabalhar em conjunto com os colegas, trocar impressões com quem, a cada fim de semana, partilha os mesmos palcos. “Aprendemos muito juntos”, aponta o árbitro de 36 anos.

Há muito que Nobre optou por este sistema, mas desde o início desta temporada que o destino da viagem para sul é outro. Depois de vários anos a fazer a preparação específica nas instalações do Sindicato dos Jogadores, em Odivelas, os árbitros do polo de Lisboa da categoria C1, os habilitados a apitar na I Liga, e as árbitras integradas neste projeto profissional da Federação Portuguesa de Futebol treinam agora na Cidade do Futebol.

Na casa do futebol português, os árbitros são agora a “30ª seleção”, termo cunhado por Pedro Proença e repetido por Luciano Gonçalves, líder do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, como que reforçando o objetivo de uma decisão que não é apenas simbólica dentro de um propósito maior que é a profissionalização da arbitragem nacional. Porque ao mesmo tempo que se passa uma mensagem, a de que “os árbitros também fazem parte da família do futebol português”, há algo verdadeiramente palpável: os juízes e juízas podem agora “usufruir dos mesmos espaços e condições de todas as restantes seleções nacionais”.

Condições renovadas

A manhã está invulgarmente fresca e cinzenta, depois de semanas de insuportável canícula. Ainda não são 9h e os relvados 2 e 3 da Cidade do Futebol já recebem mimos dos tratadores, paparicando a relva natural, de um verde reluzente, e que daqui a nada receberá o treino dos sete árbitros e três árbitras presentes na sessão da última segunda-feira. Para já, fazem recuperação ativa num ginásio erigido na novíssima Arena Portugal, inaugurada em novembro de 2024. Há que cuidar os músculos e pulmões depois de um fim de semana de jogos. Em permanência, há um preparador físico, um fisioterapeuta e vários membros do staff técnico dedicados ao grupo. No início da semana está também um médico no treino, ainda que os árbitros tenham sempre à disposição a Unidade de Saúde e Performance da FPF, bem como o apoio de um psicólogo.

Antes de passarem para o relvado, onde na manhã de segunda-feira, no cardápio, há apenas corrida, nota-se a boa disposição, numa sessão menos pesada para arrancar uma semana que terá treinos de segunda até quinta-feira, divididos entre ginásio, relvado e cerca de hora e meia de sala, para formação e observação de vídeos, com os lances que merecem mais atenção. Todas as terças, quartas e quintas há ainda sessões online à noite para quem, por razões profissionais, não as pode fazer pela manhã — a total profissionalização ainda é um caminho para os árbitros portugueses. À terça-feira, o treino é facultativo para os árbitros do masculino, já que tem uma componente de vídeo mais focada nas árbitras do feminino. À sexta-feira não há trabalhos em Oeiras, mas também não há folga: todos os árbitros têm igualmente de seguir um plano de treinos, cumprido à distância através destes novos relógios inteligentes, disponibilizados pela FPF.

Apesar do plano manter uma metodologia transversal, não só para os árbitros que treinam em Lisboa como para os que trabalham no polo do Porto e os que o fazem mais perto de casa (Luís Godinho, por exemplo, mora em Borba e é no Alentejo que treina, seguindo o mesmo método dos colegas), a semana de trabalho tem em conta os compromissos dos árbitros.

António Nobre está numa dessas semanas que necessita de adaptação, um olhar mais individualizado. Quarta-feira não terá o treino de carga como boa parte dos seus colegas, porque esse treino será feito em jogo: foi nomeado para a 1ª mão do play-off da Liga Conferência entre os austríacos do Wolfsberger e os cipriotas do Omonia, que se realizou na quinta-feira. Na semana anterior, viajou até à Turquia, para o Besiktas-St. Patrick, na mesma competição. “Nós costumamos dizer que são as melhores semanas que temos. É recuperação, ativação, jogo, recuperação, ativação, jogo. Domingo, quarta-feira, sábado”, exemplifica. As alegrias dos árbitros de futebol não são assim tão diferentes das dos jogadores — estar em ação a meio da semana, com todo o esforço físico que acarreta e as viagens que “baralham o sono”, também significa sucesso, porque é-se mais requisitado pela UEFA.

Os árbitros da 1ª categoria treinavam em instalações arrendadas ao Sindicato de Jogadores

O árbitro da Associação de Leiria é o porta-voz da satisfação dos colegas por treinarem agora na Cidade do Futebol. “Para nós é um upgrade, com certeza. Temos a direção técnica sempre muito próxima de nós, num trabalho quase contínuo, quase diário”, aponta o juiz, que realça o acesso a “um relvado sempre em excelentes condições” — em Odivelas, tinham por vezes de treinar em sintético —, e a qualidade dos “balneários, infraestruturas técnicas” e de salas de formação.

Mas, principalmente, salienta a “massa humana” que tem acompanhado o grupo de elite da arbitragem portuguesa. “Uns já trabalhavam connosco, outros foram uma excelente adição”, frisa. O esqueleto geral da semana não difere muito de anos anteriores, mas António Nobre sublinha os detalhes afinados em termos “de preparação técnica” e no treino físico, no cuidado com os tais trabalhos individualizados. E há, também, o lado da pertença, que não é de somenos: “Estarmos aqui na Cidade do Futebol é também um reconhecimento da nossa competência e do nosso trabalho para o futebol português.”

Uniformizar processos e critérios

António Nobre fala com a Tribuna Expresso antes de entrar para uma pequena reunião de feedback sobre o seu último jogo, o Felgueiras-Marítimo, da II Liga. Dentro da sala, Hugo Miguel, antigo árbitro e que agora é coordenador técnico nacional no polo de Lisboa, troca impressões com Hélder Malheiro, que esteve horas antes no Sporting-Arouca.

O desafio, “o mais brevemente possível”, sublinha Duarte Gomes, diretor técnico nacional, é “equiparar as condições para os árbitros que estão no polo da Maia”, objetivo várias vezes sublinhado pela nova direção: “Vamos tentar, dentro do possível, fechar essas assimetrias.” O antigo árbitro internacional reforça que não fazia sentido continuar a manter os árbitros que integram o projeto profissional à parte, num local arrendado, “havendo condições, meios e espaço” para treinarem na Cidade do Futebol, onde além do ginásio e de meios humanos, os juí­zes usufruem ainda de piscina e crioterapia.

Com o novo cargo de diretor técnico nacional, o Conselho de Arbitragem quis separar as competências políticas do aspeto formativo. Cabe a Duarte Gomes uniformizar processos e critérios, “da base até ao topo”.

“Não se resume apenas à elite, onde estão os 24 árbitros e seus assistentes. A Direção Técnica Nacional tem sob sua alçada todos os árbitros portugueses, do jovem de 14 anos que tirou o curso na Horta até ao João Pinheiro, que está na elite da UEFA. São mais de 5 mil árbitros, mais de 4400 no ativo. Queremos, através de uma cúpula bem definida, acompanhá-los a todos, seja a nível nacional como distrital, onde está o talento para o futuro”, sublinha o responsável que espera que este trabalho culmine, daqui “a cinco, seis, oito anos, com mais opções na elite, mais quantidade e, com isso, mais hipóteses de termos mais árbitros a singrar a nível internacional”.

Os juízes e juízas têm agora à disposição, entre outros, piscina, um ginásio equipado na Arena Portugal e crioterapia

Uma das medidas propostas pela nova direção da FPF, que tomou posse em fevereiro, é triplicar o número de efetivos nos próximos três ciclos, ou seja 12 anos, e caminhar para a total profissionalização do sector, com a futura criação de uma entidade externa. Neste momento, cerca de 75% dos árbitros principais dedicam-se em exclusivo à arbitragem, mas “se englobarmos os assistentes a média baixa significativamente”, sublinha Luciano Gonçalves. Muitos fazem-no “por autodecisão” e não por existirem “condições”, um estatuto que lhes dê segurança no futuro.

Alguns dos árbitros que treinam praticamente todos os dias na Cidade do Futebol optaram por adaptar a sua vida profissional para se dedicarem mais ao apito. Trazê-los para a casa do futebol português é apenas um pequeno passo até à plena profissionalização: “Não é por em três ou quatro meses mudarmos as condições que isso vai fazer com que comecem já a acertar muito mais. Tem que ser um caminho, isto é como uma equipa de futebol, precisa de tempo.”

Mais comunicação e abertura

A Federação Portuguesa de Futebol estreou esta semana dois programas de análise de arbitragem. Um que irá para o ar todas as semanas, no Canal 11, com uma componente mais pedagógica, divulgando as leis de jogo, mantendo-se o programa na Sport TV com os lances e comunicações do VAR, agora de duas em duas jornadas e não uma vez por mês como no passado. O Conselho de Arbitragem vai ainda promover três conferências de imprensa de balanço durante a temporada, de 10 em 10 jornadas, e as classificações dos árbitros serão públicas no site da FPF.

“Continuo a achar que se falarmos mais, comunicarmos mais com as pessoas, elas vão ficar com uma ideia diferente. E retira aquela aura de desconfiança, que está tudo escondido”, aponta Luciano Gonçalves, que assume as responsabilidades que os próprios juízes têm, ao colocarem-se durante largos anos numa espécie de bolha. O ricochete, perante as possíveis admissões de erros, é um risco que o Conselho de Arbitragem está perfeitamente consciente que pode existir. “Há uma coisa que é certa: sem comunicação, a situação como está? Se não fizermos alguma coisa de diferente, vai ficar tudo na mesma, não vai mudar nada. Pelo menos vamos tentar mudar”, atira o presidente do Conselho de Arbitragem, com a confiança que o caminho certo é feito de transparência e abertura, numa temporada que começou com visitas a clubes e ações de divulgação junto de árbitros e jornalistas das recomendações mais recentes.

E para provar que os árbitros pertencem mesmo à família, logo após o final do treino no relvado dos homens e mulheres do apito, entraram em campo os jovens da seleção sub-17.

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