“Como é que era? Tínhamos 8 e 9 anos e gostávamos de jogar à bola. O Ronaldo era reguila, era um miúdo do bairro cheio de talento. E era bom no ténis de mesa e a jogar aos matraquilhos. Também era conhecido como o “Chora”, porque não gostava de perder e quando perdia chorava”. Ricardo Santos, 31 anos, fez parte da primeira equipa de Cristiano Ronaldo, ainda o Andorinha era um clube modesto de Santo António, que jogava de empréstimo no campo de terra do liceu Jaime Moniz. Os treinos eram onde calhava, umas vezes num baldio, outras vezes em polidesportivos das escolas.
O que faltava em condições sobrava em entusiasmo, o mais expressivo era do roupeiro, o senhor Dinis, que nunca perdia um jogo da equipa e estava sempre presente para apoiar o filho, que por essa altura começava a dar nas vistas como uma jovem promessa do futebol madeirense.A fotografia de Cristiano Ronaldo menino, a quem faltam os dentes da frente, está bem à vista no Andorinha, que agora tem campo, instalações e muito orgulho em ter sido o primeiro clube do melhor do mundo.
“Lembro-me que o Ronaldo andava para todo o lado com o pai, o senhor Dinis, que era o maior apoiante, o que mais delirava com a equipa. E foi sempre assim. Sei que depois do Ronaldo ter ido para o Sporting e para o Manchester, o Dinis continuava a dizer que o filho era o melhor e discutia com quem dissesse o contrário”. Fosse o jogo no campo do liceu, em São Vicente ou na Boaventura, no outro lado da Madeira, e ainda pelas estradas antigas de curvas e contra-curvas, o roupeiro e cantoneiro da Junta não faltava.
Dinheiro é que não havia, nem no clube, nem entre a equipa, que Santo António é lugar de gente do povo e era ainda mais em 1994. As chuteiras vinham do Marítimo, em segunda mão e num grande caixote de papelão. “O caixote era despejado e a gente tinha de correr para encontrar o par melhor. O Ronaldo ficava sempre com as Desportex, que eram as que duravam mais”. O que valia ouro para o miúdo do bairro social, um entre quatro irmãos numa família que vivia com dificuldades. O pai, o senhor Dinis, era cantoneiro; a mãe, a dona Dolores, era cozinheira.
A sorte estava prestes a mudar. Depois de duas épocas no Andorinha, foi disputado pelos grandes da Madeira. O negócio fechou-se a favor do Nacional e não iria demorar a chegar ao Sporting. E daí até ao melhor de mundo foi uma questão de tempo. Ricardo Santos, um dos miúdos da fotografia do onze alinhado no campo de terra do liceu Jaime Moniz, continuou no Andorinha, a família tem uma forte ligação ao clube. O pai foi presidente e quem assinou a transferência do Cristiano Ronaldo para o Nacional. “Eu fiquei aqui, o Ronaldo joga no Real”, resume.
“Sabe que quando se gosta muito de uma coisa, fica sempre aquele bichinho, é quase um vício”. A bola e o clube. Depois de uma carreira no Andorinha como médio ofensivo, Ricardo Santos é coordenador do futebol, treinador da equipa sénior e sócio do bar.
Volta e meia, entre Novembro e Dezembro, quando se começa a falar da Bola de Ouro, é também Ricardo Santos quem recebe os jornalistas que aparecem à procura das origens do jogador.
“A última vez foi uma equipa de jornalistas japonesa. Primeiro veio uma jornalista, que falava português, fazer contactos, depois veio a equipa e até trouxeram um actor para fazer uma reconstituição dos primeiros tempos aqui do Ronaldo. Até jogou com os nossos miúdos. Eu achei que ficava melhor uma coisa mais realista, mas preferiram assim”. Foram os últimos de uma longa lista: brasileiros, alemães, espanhóis, já passaram jornalistas de todas as partes do mundo. Para facilitar o clube digitalizou fotografias e cedeu o primeiro cartão de atleta federado ao museu CR7.
O clube é a única ligação de Ronaldo à freguesia, às origens, é ali que param os táxis, os turistas querem tirar fotografias, saber de onde veio o jogador do Real Madrid.. É dali, daquelas redondezas, onde o velho bairro social da Quinta Falcão se confunde com vivendas, habitação clandestina e tem vista para o campo de treinos do Marítimo e para a igreja de Santo António. A casa onde viveu foi demolida, o espaço agora serve de estacionamento.
O puto que batia os pontapés de baliza
David Fraga, 33 anos, guarda com carinho o recorte do jornal da entrevista que deu há 16 anos ao lado de Cristiano Ronaldo, ali mesmo na placa central, a parte elegante da baixa do Funchal. Os dois eram, por essa altura, duas promessas madeirenses no futebol nacional, um pelo Sporting e outro pelo Benfica. “Até brincámos com isso, estávamos trocados. O Ronaldo era do Benfica e jogava pelo Sporting”. O ano 2000 estava a acabar e os dois encontravam-se quase sempre no avião, no regresso a casa pelo Natal e nas férias do Verão, mas conheciam-se desde os infantis.
“Jogámos um contra outro. Eu no Marítimo, ele pelo Andorinha e depois pelo Nacional. E o Ronaldo já era um jogador fora de série, que batia os pontapés de baliza e metia a bola a meio campo. Batia com o pé esquerdo e com o direito, o que não era comum. Dizem que trabalhou muito, mas aos 11 anos já se sabia que tinha talento. Quem não valoriza o Ronaldo não percebe de futebol”.
David valoriza pelo talento, pela cabeça e pela garra e sente-se feliz por, num momento, a sua vida ter cruzado com a da estrela do futebol. E houve uma vez em que foram da mesma equipa, quando vestiram as cores da seleção da Madeira num torneio inter-ilhas na Córsega. “Foi uma viagem memorável. Está a ver uma data de miúdos longe de casa pela primeira vez, num lugar diferente? Claro que era bom porque íamos jogar à bola, mas sei que ficámos todos espantados quando fomos passear na praia e vimos mulheres em topless, uma coisa que não era comum na Madeira”.
Do torneio, David Fraga, que era ponta de lança, tem memória do jogo com a equipa da Sardenha, que mais parecia uma seleção de basquetebol. “Quando os vimos chegar ficámos de boca aberta, aquilo parecia uma equipa de basquetebol, mas também me lembro que o Ronaldo deu um show de bola, fintou por entre as pernas, por cima, foi como ainda hoje é. E era o mais pequeno de todos”.
O mais pequeno e o mais determinado. A última vez que se encontraram no avião Cristiano Ronaldo tinha passado à equipa B do Sporting e a estava um passo de se estrear nos seniores.
“Teve a cabeça que eu não tive, que troquei o Benfica pelo Marítimo. Não é fácil aguentar longe de casa. Depois houve o divórcio dos meus pais e fui ficando, joguei nos juniores e na equipa B do Marítimo, depois andei pelo Camacha, o Leonardo Jardim foi meu treinador”. O último clube foi o Santacruzense, onde uma lesão grave no pé o afastou de vez do futebol. A vida segue, tem um filho e planos para o futuro, quer abrir um bar de música ao vivo, mas sabe que jogar é “espectacular”, que liberta, “uma pessoa sente que é mais do que é na realidade”.
Um dia, se se proporcionar, gostava de dar os parabéns ao Ronaldo. Por tudo o que conseguiu, pela carreira, por ser quem é. “Às vezes, quando penso nisso, lembro-me do senhor Dinis no dia em que o Ronaldo marcou 16 golos ao Juventude de Gaula, ninguém o calava, estava a rebentar de alegria, de felicidade. O pai do Ronaldo acreditou sempre, nunca teve dúvidas de que o filho era o melhor mundo”.
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