Sobre mulheres e quartos de hotel, uma história entre muitas: há uns anos, conheci duas loiras norueguesas numa discoteca de Nova Iorque. A noite ia animada, saímos de limusina para outra discoteca e dali apanhámos um táxi para o hotel onde estava hospedado. Não interessam para aqui os detalhes, mas o próprio taxista poderia assegurar que eu tinha a noite assegurada.
E assim, certo de ter reunido o quórum para cumprir a fantasia de qualquer homem, subi com as duas mulheres até ao meu quarto. A coisa prometia muito, mas uma das jovens loiras – a que tinha mais iniciativa – ferrou no sono mal caiu na cama. E a outra, bem mais tímida, começou a ficar com dúvidas. “Não vou fazer isto com ela aqui ao lado". De nada de me valeu tentar demovê-la. “Que sugeres então? Que durmamos?", perguntei-lhe. "Sim, vamos dormir", respondeu. E foi assim que acabei a dormir com duas norueguesas, mas não no sentido que tinha imaginado uma hora antes. De manhã, tomámos juntos o pequeno-almoço, que teve aquele sabor agridoce de fama sem proveito, e seguimos as nossas vidas.
Eu não sei – e para o caso interessa pouco – que razão levou Kathryn Mayorga ao quarto de Cristiano Ronaldo, que agora acusa de violação. Era uma suite onde estavam mais pessoas, pode ter querido apenas passar algum tempo com alguém que era famoso. E, pode até, ter desejado ter sexo com ele – embora agora o negue – e depois ter mudado de ideias. Não devia espantar ninguém, acontece milhões de vezes. Mas nada disso importa realmente (não há atenuantes para uma possível violação) e é indecente que se recupere o velho argumento “estava a pedi-las" e se catalogue uma mulher com base nesse preconceito.
Esta crónica não é sequer sobre a eventual culpabilidade de Ronaldo – devem ser os tribunais a decidi-la – mas sobre o quão polarizado se tornou o debate em torno deste caso, pondo a nu uma série de preconceitos que nos deviam envergonhar e a gritante falta de empatia de muita gente em relação a uma potencial vítima. Nunca deixo de me surpreender com a quantidade de pessoas – muitas delas mulheres – que presumem saber como se comportariam caso tivessem sido violadas. Não teriam esperado tantos anos para denunciar o caso (será assim tão fácil enfrentar alguém super poderoso, com o seu batalhão de advogados, o assédio dos media, o ódio dos fãs?). Não teriam feito um acordo (sabe-se lá em que condições psicológicas e sobre que pressões). E teriam resistido, que disso ninguém duvide.
Foco-me neste último preconceito – o que relaciona a ausência de sinais de resistência com um eventual consentimento – por ser o mais ignorante e insensível de todos. “Quando uma mulher não quer, o corpo não colabora”, escreve-se com douta sabedoria. “Ele só conseguiria recorrendo à força física. Onde estão os vestígios dessas marcas de força?”. Basta ouvir os depoimentos de vítimas de violação para perceber que não é assim tão simples: muitas mulheres são aconselhadas a não resistir ao agressor, mesmo que este seja um conselho pobre. Afirmações como as citadas em cima só revelam o mais básico desconhecimento do que dizem os estudos: SEGUNDO UMA INVESTIGAÇÃO RECENTE, a maioria das vítimas de violação sofre uma forma de paralisia involuntária que bloqueia a sua capacidade de resistência física. Os cientistas chamam-lhe “imobilidade tónica”.
Outras vozes acusam Mayorga de oportunismo, por vir agora acusar o jogador depois de ter aceitado o seu dinheiro há nove anos. Mas o que nos deve incomodar mais: esse pretenso cinismo ou a possibilidade de Ronaldo ter comprado o silêncio de uma vítima de violação? Se o fez para escapar ileso a um crime, devemos conformar-nos que os ricos e poderosos possam prevaricar à vontade e comprar um cartão “saída da prisão” com uma mala cheia de dinheiro? Quem aceita este oportuno atalho poderá mesmo queixar-se de oportunismo?
Significa isto que são verdadeiras AS ACUSAÇÕES que pendem sobre Ronaldo? Ou será a americana uma chantagista que seduziu o futebolista com um plano em mente? Não sabemos, embora seja certo que, se está a mentir, a americana arrisca arruinar a sua vida. O que sabemos é que há nesta história mais interrogações do que certezas. Serão os exames médicos (que revelam escoriações múltiplas no ânus) suficientes para gerar a convicção num juiz de que a penetração anal não foi consentida? E terá Ronaldo confessado o crime aos seus advogados, admitindo que a mulher “disse ‘não’ e ‘pára’ várias vezes” e se queixou de ele a ter “forçado”, como revelam os documentos obtidos pela “Der Spiegel”? Se se comprovar que são verdadeiros, não deveríamos precisar de um desfecho judicial para abominar o comportamento do jogador.
O que é hoje evidente é que é impossível varrer esta história para baixo do tapete, esperando que ela desapareça, como aconteceu há ano e meio quando a “Der Spiegel” denunciou pela primeira vez o caso e os agentes de Ronaldo o classificaram como “fantasia jornalística”. Se Ronaldo é, de facto, inocente, merece que sobre ele não recaia qualquer suspeita – e uma indemnização pelos danos causados à sua imagem. Se é culpado, merece a condenação de todos nós. Sem exceção. Que seja um profissional digno da nossa admiração não nos deve toldar a razão.
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