Cristiano e as duas coisas incontornáveis da vida

Jornalista
A exibição coletiva, apesar da muita superioridade, foi cinzenta. Não há muita criatividade, faltam sócios que falem com os olhos. Não há botas na zona 10, a morada fiscal onde habitam os craques que inventam golos. Mas a escolha de Cristiano Ronaldo para a figura do Hungria-Portugal é da responsabilidade de uma mensagem que chegou ao telefone: jogou pouco durante 85 minutos, mas o jogo tem 90. Foi mais ou menos assim.
É verdade, um jogo de futebol tem 90 minutos e os verdadeiros, os killers, os grandes, estão ligados até ao fim. A exibição até foi pobre, uns furos abaixo de colegas como William Carvalho, Pepe ou até de um surpreendente Rafa, que teve uma importante influência no resultado (3-0). Mas ele, que tocou 49 vezes na bola e acertou 87% dos passes, tem o norte na baliza e jamais, enquanto não pendurar as botas, vai mudar o rumo. O caminho é para a frente e tem redes.
Já depois de Portugal ter celebrado o primeiro golo na Puskás Aréna, Renato fez uma renatice e galgou muitos metros, chocando com três, quatro adversários, que já deviam saber o que a casa gasta, até que soltou para Rafa, que inventou uma bela receção que lhe permitiu ganhar um penálti. Cristiano Ronaldo respirou fundo, ali à frente dele, para além do guarda-redes Péter Gulácsi, estava o encontro com a História.
Bola para um lado, guarda-redes húngaro para o outro.
Agora sim, é oficial, Cristiano Ronaldo é o melhor marcador da história dos Campeonatos da Europa, um torneio inaugurado em 1962, em França, o palco onde Cristiano e companhia se sagraram campeões da Europa há cinco anos. O 10.º golo em Europeus do capitão da seleção permitiu-lhe superar finalmente Michel Platini, que também tinha marcado nove, todos em 1984, quando a França e o seu futebol champagne conquistaram o trono da Europa.
Quando o povo português sacudia a angústia de uma exibição pouco venenosa, arejando, relaxando como não fora possível até ali, a seleção começou a trocar alguns passes curtos. Os húngaros, com tanta gente a puxar por eles, arrumaram as capas de super-homens, os golos dos rivais sacaram-lhes, assim sem mais nem menos, o oxigénio do corpo.
Tac, tac, tac, Rafa, Moutinho, Renato, Moutinho, Renato, André Silva, Moutinho, Ronaldo, Rafa, Renato... Tac, tac, tac. A portugalidade baixou às botas dos rapazes. Mas lá está, mais adepto de água do que de conformismos, há sempre por ali um senhor insatisfeito. Tac, tac, tac, Renato, Ronaldo, Rafa, Ronaldo, Rafa, Ronaldo… simulação lendária a deixar Gulácsi fora do lance e bola na baliza deserta: 11 golos em Europeus (106 ao todo, a três de Ali Daei).
Ou seja, abaixo de Ronaldo agora está o mundo inteiro, mas lembremos quem são os restantes melhores marcadores das fases finais deste torneio: Michel Platini (9), Alan Shearer (7), Antoine Griezmann (6), Zlatan Ibrahimovic (6), Thierry Henry (6), Patrick Kluivert (6), Nuno Gomes (6) e Ruud van Nistelrooy (6). Só o francês Griezmann, de 30 anos, está em atividade.
Se às fases finais juntarmos as fases de qualificação, o killer instinct de Cristiano é ainda mais gritante: 42 golos para Ronaldo, muito à frente dos 25 de Zlatan Ibrahimović e dos 23 de Robbie Keane.
O número 7 de Portugal conseguiu, aos 36 anos, outra proeza: é o único futebolista da história deste desporto a participar em cinco Campeonatos da Europa, ultrapassando gente como Lothar Matthäus (1980, 1984, 1988, 2000), Peter Schmeichel (1988, 1992, 1996, 2000), Alessandro Del Piero (1996, 2000, 2004, 2008), Edwin van der Sar (1996, 2000, 2004 2008) e Lilian Thuram (1996, 2000, 2004, 2008).
O avançado português, que concluiu apenas um dos três dribles que tentou e que perdeu mais duelos do que ganhou, iguala agora na lista de melhores marcadores do Euro 2020 Romelu Lukaku e Patrik Schick, piscando o olho a algo que nunca logrou. Apesar de ser o maior goleador da história dos Europeus, Cristiano nunca foi o melhor marcador de uma edição. Em 2012, marcou os mesmos três golos de Fernando Torres, assim como de Alan Dzagoev, Mario Gomez, Mario Mandžukić e Mario Balotelli, mas o menor tempo de jogo ditou que o pichichi fosse o espanhol.
"O importante era ganhar, foi um jogo bastante difícil frente a uma equipa que defendeu bastante bem nos 90 minutos, mas conseguimos marcar três golos e estou muito agradecido à equipa por me ter ajudado a marcar dois golos e ser homem do jogo”, disse Cristiano depois do jogo, deixando um aviso: “Era fundamental entrar com o pé direito para dar confiança e agora é continuar, continuar. O próximo jogo também é para ganhar".
Com mais ou menos futebol, há duas coisas incontornáveis na vida: um jogo de futebol tem 90 minutos e Ronaldo ainda está aqui.
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