Em 2011, o play-off entre Portugal e Bósnia teve lasers, piretes e golos maravilhosos. Ah, e uma sentença bem-vinda de Dzeko sobre Cristiano
Cristiano faz o 1-0, de livre
BRUNO PIRES
Cristiano Ronaldo e Edin Dzeko, de 38 e 37 anos, ainda integram as seleções que se voltam a encontrar este sábado (19h45, RTP), na Luz, na corrida para mais um Campeonato da Europa, tal como aconteceu em 2011, num play-off, que teve um relvado miserável, lasers nos olhos de Cristiano e gritos por “Messi”, em Zenica, e depois, em Lisboa, uma barrigada de futebol e grandes golos
Não era 1992, mas a Dinamarca acabou por rir outra vez. Portugal fechou o Grupo H da corrida ao Euro 2012 na segunda posição, apurando-se assim para o play-off. O adversário seria a Bósnia e Herzegovina. E houve de tudo nessa eliminatória. Um relvado depenado, um eloquente castelo nos dedos de Cristiano Ronaldo, um jardim em forma de laser nos olhos do craque, provocações, gritos por Messi, uma goleada aliviadora e um final feliz, num Estádio da Luz com suas gentes enamoradas e de barriga cheia.
Perto de 12 anos depois, no mesmo estádio, os portugueses voltam a olhar nos olhos dos bósnios para tratar de encaminhar uma obrigatória qualificação para mais um Campeonato da Europa. O Grupo J conta ainda com os esforços de Eslováquia, Irlanda, Islândia, Luxemburgo e Liechtenstein. Dois jogos, duas vitórias, 10 golos marcados e zero sofridos são, para já, o cartão de visita da nova seleção portuguesa, agora treinada por Roberto Martínez, na ressaca do desolador Catar 2022.
Mas voltemos a 2011. As lérias provocadoras começaram logo em Sarajevo, no aeroporto da capital do país. Cristiano ouviu sair da garganta dos locais gritos por Messi, uma sombra sonora que o persegue como uma nuvem. Ainda hoje é usado o mesmo mecanismo para perturbar o capitão da seleção, até na Arábia Saudita. Depois, foi no estádio, em Zenica, durante o treino de adaptação ao miserável relvado, que segundo alguns jornalistas tinha clareiras de 10, 20 centímetros sem relva. O verde que não existia debaixo dos dentes das botas, alojou-se nos olhos. Nessa sessão de treino, Ronaldo foi perseguido por um laser dessa cor, o que irritou o futebolista. E o tal pirete foi inaugurado.
“Levei com cinco lasers nos olhos, mas só falam dos gestos que faço. Os outros só fazem porcaria, mas disso ninguém fala”, desabafou, insatisfeito, depois do 0-0 desse primeiro jogo do play-off. Paulo Bento apostou em Rui Patrício, João Pereira, Bruno Alves, Pepe, Fábio Coentrão, Miguel Veloso, João Moutinho, Raúl Meireles, Nani, Cristiano Ronaldo e Hélder Postiga.
Dzeko, no Estádio da Luz
PATRICIA DE MELO MOREIRA
Durante os 90 minutos, Cristiano voltou a ser atacado pelos lasers, mas era um homem com uma missão. “Tenho de reagir bem porque já sabia que eles iam provocar-me de todas as maneiras”, explicou então. “Não podia levar amarelo. Tentei ficar calmo todo o jogo, pois sabia que se fizesse alguma coisa ia levar cartão e prejudicar a equipa para o segundo jogo.” Não meteu golos no tal ervado de Zenica, num ambiente hostil, mas não viu qualquer cartão amarelo, garantindo a presença na Luz quatro dias depois.
Do outro lado havia craques como Zvjezdan Misimovic, Miralem Pjanic e, claro, Edin Dzeko, o tal que poucos meses depois diria, na eliminatória entre Sporting e Manchester City na Liga Europa, que não conhecia jogadores da equipa portuguesa. Rui Patrício prometeu então: “Ele vai ficar a conhecer-nos”. E, depois de Xandão e do seu calcanhar, serviu-lhe a sobremesa: “O Dzeko já conhece alguns jogadores do Sporting…”
O jogo na Luz tinha um caráter importante e tenso, pois Portugal estivera em todas as fases finais de grandes torneios desde 2000, com finais e meias-finais pelo meio. Paulo Bento, que garantia que o seu futuro naquele cargo não lhe tirava o sono, escolheu exatamente a mesma equipa. A relva cantava de outra maneira, então, com uma bola obediente, os portugueses meteram-se em vantagem no marcador aos 24’. Cristiano, com um tiro para a baliza de Asmir Begovic, e Nani, com um remate que pertence aos jogadores especiais, fizeram os golos. Paulo Bento celebrou efusivamente. O ambiente era de festa e ninguém contemplava fados tristes.
Depois do jogo, o hino e a celebração com os adeptos
Jasper Juinen
Mas Misimovic, de penálti, reduziu. Após um passe majestoso de Moutinho, um estelar Cristiano sossegou o povo, com o 3-1, sentando Begovic e vingando-se dos gritos e lasers que assolaram a sua paz interior na Bósnia. Dzeko, que demonstrou naquele relvado lisboeta mais uma vez que é um monstro a jogar futebol, tinha razão: “Qualquer equipa com o Cristiano é favorita”. Senad Lulic foi expulso logo a seguir.
Nada podia correr mal, mas a portugalidade que nos toca não permite tal desafogo. Emir Spahic, num fora de jogo que saca arrepios da pele em tempos de VAR, voltou a reduzir e colocou os bósnios a um golo do Euro 2012, aos 65’. Mas o aflitismo, essa doutrina tão do futebol português, não entrou na cabeça dos jogadores e, se a memória não falha a este jornalista, nem intoxicou demasiado os corredores e as cadeiras do estádio. Hélder Postiga, em resgate da calma definitiva, meteu o 4-2. A bola de Rúben Micael foi barrada com mel.
A esperança dos bósnios que andaram pelo Rossio a beber cerveja, a cantar e dançar estava definitivamente aniquilada. E haveria mais. Miguel Veloso meteu um golaço de livre direto (Begovic assumiu o papel de estátua) e, aos 82’, Postiga, então no Zaragoza, bisou e engordou o finalmente saciado marcador: 6-2.
Depois dos beijos e carinhos enviados pelo ar para os futebolistas, das habituais aproximações aos adeptos, os cachecóis daqueles que testemunharam mais um apuramento esticaram-se e colaram-se ao céu. Os jogadores juntaram-se, aquecendo os ombros uns dos outros, mostrou-se uma enorme bandeira de Portugal. E lá se cantou o hino nacional depois da barrigada. A quinta presença consecutiva num Europeu estava garantida. Poborksy-1996, Zidane-2000, Charisteas-2004, Ballack-2008, os carrascos até ali. Em 2012, Portugal não chegaria à final do Euro por muito pouco, ditaram os penáltis contra a futura bicampeã Espanha.
Na ressaca do jogo, um soco no estômago. Foi tornado público que o filho de Carlos Martins, um dos futebolista do elenco nacional, precisava de um transplante de medula óssea. Por isso Cristiano Ronaldo e Paulo Bento, no final da partida contra a Bósnia, apelaram à doação de sangue. “Estamos todos com ele”, afirmou o capitão da seleção. “Espero que as pessoas sejam sensibilizadas para doar sangue e medula óssea, porque é uma situação que afeta muitas crianças.” Nos últimos dias desse mês de novembro, Paulo Bento, a esposa e alguns membros da equipa técnica doaram sangue e alimentaram a onda de solidariedade à volta de Gustavo, o filho de Carlos Martins. A criança acabaria por recuperar da doença, motivando mais um final feliz para a família e para o país, que se emocionou com o drama.
Quase 12 anos depois, num contexto mais tranquilo e com um título de campeão europeu na bagagem, Portugal, ainda de Cristiano Ronaldo (38 anos), volta a defrontar a Bósnia, agora também de Kenan, filho de Meho Kodro, e ainda de Dzeko (37 anos). Certamente, o avançado do Inter (e brevemente do Fenerbahçe?) já conhecerá mais futebolistas portugueses hoje em dia, resta saber se a sua sentença prevalece e se sobreviveu aos desafios do tempo e do que é finito: “Qualquer equipa com o Cristiano é favorita”.