Com triângulos fabulosos a derreter islandeses se fechou a caminhada perfeita rumo ao Euro 2024
Soccrates Images
Portugal venceu esta noite, em Alvalade, a Islândia por 2-0, com golos de Bruno Fernandes e Ricardo Horta. A seleção orientada por Roberto Martínez conseguiu o que nunca havia feito: só vitórias numa fase de qualificação. Foram 10 em 10.
Um vídeo da canção “Take Five” de Dave Brubeck começou a sair das colunas desta máquina de escrever dos tempos modernos, um pouco inesperadamente, e a forma como casou com o futebol inicial da seleção em Alvalade assombrou. Pareciam artistas de jazz. Fluidez. Calcanhares. Triângulos. Habilidade. Cadência. Vertigem. Pausa. Caos organizado. A escolha certa das palavras que não se diziam. Arte. Música, que só ouve quem está perto, quando a bola estala nas botas afinadas.
João Cancelo, o artista dos artistas esta noite, queria matar à fome as saudades que se vão tendo do futebol informal, do descaso. Depois do intervalo e de tanto, voltou ao relvado a ouvir dicas de um tal de João Vieira Pinto. Não dá para melhorar. João Félix estava ligado (foi caindo depois, não o beneficia jogar como extremo). Otávio apresentava-se com as habituais e invejáveis utilidade e qualidade. Gonçalo Inácio, um central com alma de médio, também ia aparecendo ali no mágico lado esquerdo, que mais parecia um qualquer triângulo das bermudas. Qualquer islandês que se colocasse diante deles, era engolido. A bola só queria saber dos segredos das botas dos homens de vermelho.
Com o passar do tempo, do lado direito também se começou a ouvir música da boa, o que sempre acontece quando Bernardo Silva e Bruno Fernandes se juntam. João Palhinha, um imenso 6, segurava as pontas e permitia os desvarios dos centrais Rúben Dias e Inácio, mas também de Cancelo e João Mário, um estreante nestas andanças e que a certa altura fez um atraso para o colega de clube Diogo Costa que, bom, fez soar numa coluna distante algo como “ice, ice, baby”. O médio do Fulham permite, com a sua fisicalidade e disponibilidade e sabedoria e qualidade, o que Rúben Neves e outros já não permitem. Por isso, Palhinha é um aliado do caos, da possibilidade de serem enviados para o ataque homens como se fossem enviados para uma abençoada missão à lua. Ia-se abusando dos cruzamentos, esse fruto tão pouco proibido.
Do outro lado, no pouco tempo que sobrou quando não estavam a defender, os islandeses apostavam num futebol direto, no jogo aéreo e numa ou outra correria. O mais virtuoso futebolista fardado de branco foi Arnór Sigurosson, o camisola 8. Foi ele que ameaçou a baliza de Costa no primeiro tempo. Na baliza contaram com o seguro Hákon Rafn Valdimarsson.
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Otávio, depois de mais um triângulo fabuloso, sacou um mau cruzamento e a bola foi beijar o ferro. Cristiano Ronaldo, que dificilmente poderia acompanhar os quatro golos de Lukaku no Bélgica-Azerbaijão, ia revelando alguma frustração. O avançado saiu da sua zona para se sentir parte das festas que se iam dando nos corredores. Também Inácio ficou perto do golo, de cabeça, depois de um livre lateral de Fernandes. O central do Sporting parecia um relâmpago na área islandesa.
O golo chegou por Bruno Fernandes, antes do intervalo. Bernardo tocou de calcanhar e o médio do Manchester United, descaído para a direita, dominou com a sola e disparou como tantas vezes disparou na sua vida. São já 19 golos em 63 internacionalizações, sendo que nesta qualificação para o Euro 2024 são já seis golos e oito assistências. Uma fera.
O futebol caiu de qualidade no segundo tempo, mas nunca os jogadores portugueses demonstraram algum desdém perante a tarefa desta noite. Tresandava realmente a compromisso com o objetivo de terminarem o apuramento para o próximo Campeonato da Europa com 10 vitórias em 10 jogos, algo inédito na história do futebol português.
Alvalade ia cantando por Cristiano Ronaldo, mas ele e os colegas, que tanto tentaram servir o capitão com cruzamentos, não souberam dar aos milhares nas bancadas a felicidade do golo do filho mais famoso.
Portugal continuou a tentar matar o jogo. E o segundo golo finalmente chegou aos 66’, por Ricardo Horta. O futebolista do SC Braga aproveitou a recarga de uma recarga para descansar Roberto Martínez, um homem que muito fala em clareza, ligações, qualidade coletiva e individual e flexibilidade tática. Ele próprio deu o exemplo quando, nos últimos minutos, meteu João Neves em campo e colocou a equipa com três defesas, à Co Adriaanse, com Rúben Dias, Palhinha e Gonçalo Inácio.
O apito final, que não chegou sem uma grande defesa de Diogo Costa e de seguida do poste (remate de Arnór Traustason) depois dos 90’, sentenciou a ausência de um golo de Cristiano, mas decretou outras coisas, como o primeiro apuramento da história portuguesa com apenas vitórias. Foram 10 vitórias em 10 jogos, uma caminhada imaculada que Roberto Martínez já havia experimentado enquanto selecionador da Bélgica. É um feito admirável.
O grupo está formado, as ideias são claras, não haverá grandes truques ou armadilhas de última hora, certamente. O calendário revela cinzentamente que falta muito para junho, mas, na verdade, o Europeu está apenas a dois jogos de distância. As sensações são boas, mas faltaram testes mais complexos.