Diogo Costa, a sua espargata e o seu instinto

Editor
Como o jogo estava, um atabalhoamento em curso com a seleção sem norte nem quaisquer pontos cardeais, um desnorte completo para o qual nem o selecionador a partir do banco se prestava a atenuar se não pelas indicações dadas, recados passados ou ajustes explicados em poucos segundos, pelo menos que fosse através de sinais dados ao substituir jogadores. Havia 115 minutos contados no relógio, o equivalente a 6900 segundos ou quase duas horas, traduzir tanto tempo por várias unidades serve dois propósitos e comecemos pelo pior, que vai envelhecer bem porque a seguir houve um melhor que não o deixou piorar.
Cada articulação, músculo e tendão no corpo de 41 anos de Pepe estaria a dar horas quando o jogo ia com esse tempo e ele, a meio da metade do campo de Portugal, após cortar uma bola, pareceu ter o próprio corpo a encravar, houve um glitch momentâneo na maquinaria refinada do ainda melhor defesa central português que contados esses 115 minutos quis dar um passe ao lado e o seu esqueleto que ainda tanto lhe vale o traiu num ápice, nem um segundo deve ter sido, quando a sua perna solavancou e deixou a bola à mercê de Benjamin Šeško.
O avançado esloveno do cabelo descolorado teve pradaria aberta para correr em direção à baliza, um corpo embalado com trajetória apontada ao alvo. Pepe dedicou o último esgar do seu motor a persegui-lo, de rastos, quase nem o puxar ou agarrar ou importunar conseguiu enquanto Šeško só via um outro corpo à frente, equipado e preto e de luvas postas, precisamente o último dos corpos de Portugal naquela jogada mas o primeiro corpo do qual este texto pretende versar.
Num daqueles momentos em que o estômago é prensado e encostado às costas dentro de quem torce pela seleção nacional, Šeško ia lançando para uma oportunidade de golo em que um guarda-redes está invariavelmente do lado mau das probabilidades: com os seus humildes 186 centímetros dos pés à cabeça, Diogo Costa foi até mais ou menos à marca de penálti da área e ao encontro do esloveno para proteger um alvo com uma trave a 2,44 metros de altura assente em dois postes separados por 7,32 metros.
A giganteza de Diogo Costa desenhou-se quando teve a calma para se aguentar em pé na iminência do remate, manter os apoios e esperar até ser Šeško a escolher onde ia tentar meter a bola em vez de o presentear com uma tentativa de adivinhação. Quando o esloveno rematou, Diogo Costa avolumou-se, como um pavão a querer encantar quem o vê, aumentando a sua envergadura de repente e com uma espécie de espargata que o deixou estendido na relva, especialmente com a perna esquerda esticada e o respetivo pé que desviou a bola.
O pronto salvamento de Diogo Costa à seleção nacional - e o socorro feito a Pepe, que acabaria a jogada ajoelhado e de rastos, com os bofes de fora - começaram aí.
Dir-se-á no dia seguinte à vitória, no amanhã depois desse e na ressaca subsequente que o guarda-redes de Portugal foi o herói, o salvador, o muro, o último bastião, a muralha intransponível ou outros cognomes cheios de grandiosidade para primeiras páginas de jornais que invariavelmente se vão centrar nos penáltis.
Diogo Costa e o seu sinal no nariz de uma cara imperturbável, a face plena de concentração, atirou-se para a esquerda no penálti de Iličić, pulou à direita para bloquear o de Balkovec e lançou-se ao mesmo lado para levar as mãos ao de Verbic. Parou os três penáltis que a Eslovénia teve e no final, com os olhos empapados do choro de alegria deixado em campo, explicou que confiou no instinto, que se mata a trabalhar e que os desenlaces tendem a proteger quem se dedica a esculpir aptidões para a hora em que vierem a dar jeito.
Ele abrilhantou-se na Alemanha, onde há 18 anos reluziu Ricardo, o outro tipo de luvas e balizas que defendera três penáltis num desempate com Portugal numa grande competição e na terra que faz Diogo Costa estar mais perto de onde veio ao mundo (em Rothrist, na Suíça) do que quando joga no Porto, pelo FC Porto, onde já é o guarda-redes que mais penáltis parou pelo clube e que até já deu uma assistência no mesmo jogo da Liga dos Campeões em que parou um desses remates feitos a 11 metros da baliza. A sua ainda breve história vincou, ainda mais, a pegada das grandes penalidades.
Diogo Costa confessar que achou por bem seguir o instinto acaba por ser curioso dado contágio da modernidade aos hábitos de quem protege uma baliza: em tempos de análises de vídeo, de tudo se saber acerca dos hábitos dos adversários e de plataformas que deixam pesquisar pelo nome de um jogador e ver os últimos 20 penáltis que marcou, aos guarda-redes informa-se como um certo futebolista costuma bater os penáltis, quantos bateu para ali, o número dos que optou por colocar acolá e a forma como é habitual correr para a bola. É comum os treinadores de guarda-redes tentarem dar-lhes informação para não deixar tudo assente na intuição.
Em Frankfurt, após tudo baralhar e afogar a seleção nacional no caos desregulado em que o jogo português se tornou na segunda parte e, depois, no prolongamento, Roberto Martínez viu o guarda-redes salvar Portugal no um-para-um. O pronto socorro ocorreu aí, na espargata. A glória dos penáltis, que vai roubar a luz dos holofotes elogiosos, foi apenas um tipo a confiar no que leva dentro. E em Diogo Costa mora muita coisa, não só o instinto.
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