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O riquíssimo Pepe, maior exemplo de longevidade que Portugal já teve

O riquíssimo Pepe, maior exemplo de longevidade que Portugal já teve
Jonathan Moscrop/Getty

Não sabemos se foi o derradeiro jogo de Pepe com Portugal, ou se foi o último da sua carreira, ele diz que já decidiu e que o anunciará em breve. Aos 41 anos, cinco meses e 19 dias, o central jogou 120 minutos extraordinários contra a França, voltou a ser exímio a aguentar a linha defensiva da seleção e mostrou ser, caso faltassem provas, um raro caso de preservação de qualidade apesar do avançar da idade. Se este foi o adeus de Pepe, então foi um adeus épico

Tentar extrair evidências científicas de pesquisas instantâneas feitas no Google é ir ao engano. Faz-nos sentir sabichões, há um perigo relativo trazido pela rapidez com que sinapses no cérebro fazem as pontas dos dedos baterem nas teclas, escrevinharem algo e os resultados aparecerem no ecrã, que não são mais do que luz a entrar olhos dentro, a viajar até à sensível camada chamada retina que a transforma em sinais para serem enviados pelos nervos óticos ao cérebro, que depois trata de os decifrar e traduzir no que entendemos como ler e assim se lê, num instante, como o corpo humano, chegado aos arrabaldes dos 30 anos de existência, está condenado a perder 3% a 8% de massa muscular por década. Ou 1% ou 2% ao ano a partir dos 35, os resumos em sites de universidades norte-americanas variam e parecem não acertar agulhas nisto.

Do brincar por momentos às pesquisas extraem-se estas pitadas de conhecimento de bolso que, no fundo, são nada, mas, mesmo que superficialmente, ajudam a reforçar a dificuldade em atinar com a constatação de que na sexta-feira, nos quartos de final do Europeu onde se concentram muitos dos melhores jogadores do mundo em seleções agrupadas no maior torneio continental de um futebol eurocêntrico, esteve um homem com 41 anos, sete meses e 19 dias, no seu processo de perda muscular em curso, a correr atrás de rapazes com menos década e meia de vida e com a carne agarrada aos ossos ainda pujante, cheia de faíscas, a fazê-los sentir na flor da idade e capazes de tudo.

Ia a noite já longa em Hamburgo, a segunda parte a terminar, quando uma tentativa de Portugal se precipitar num último aperto à área de França deixou Pepe em situação apertada. Ele estava uns cinco metros à frente da linha do meio-campo quando um passe foi posto em Marcus Thuram, uma gazela de 26 anos, tão rápido quanto perspicaz a endossar a bola para a pradaria de espaço entre eles e a baliza e zarpar, ainda por cima com frescura vinda do banco de suplentes e aí viu-se um pobre Pepe, um paupérrimo e incapaz Pepe, a ter de levar com um jovem a escancarar-lhe a flagrância da passagem do tempo, a confiar que a velocidade a habitar em doses distintas nos seus corpos chegaria para se livrar do português.

Houve um momento de ambos a sprintarem lado a lado e o mecânico Thuram, dentes cerrados, a escapulir-se com Pepe a inclinar o corpo para trás, como a resistir à ventania da idade que soprava com ele, na pose suplicante de esforço que fez o francês parar apesar de ter vantagem sobre a bola. Frenado por um instante, o avançado executou uma das maiores injúrias para um defesa, uma vez com o adversário ultrapassado ousou evadir-se dele novamente, de novo a bola para o lado, explosão e velocidade, e aí a pobreza de Pepe pareceu franciscana a prendê-lo à relva. Só que, noutro ápice, ele desencantou das suas entranhas uma riqueza que jamais haverá pesquisas googleiras suficientes para devolver uma explicação, seja científica ou do domínio do palpite.

O rico Pepe não desistiu, logo reagiu. E foi atrás.

O há momentos desconjuntado defesa central partiu no encalço do petiz francês. Alcançou-o junto à linha de fundo e no zénite da sua resistência desviou a bola para fora, a técnica de desarme intacta perante o avançar da idade, embrulhando as suas pernas nas de Thuram, ambos caindo no relvado. Cortado o lance, desbravado o perigo, Pepe foi o primeiro a levantar-se, o mais velho a rugir na cara do mais novo: cerrou os punhos, esticou os braços e gritou um berro que lhe vascularizou o pescoço, o fogo no olhar incandescente e as rugas na testa salientes. Nos descontos da partida e com o prolongamento à vista, o ancião deste Europeu mostrava o quão riquíssimo é.

A questão com Pepe trata-se de ele ser assim, um rugido constante a epitomizar um raro caso de preservação das capacidades no avançar da idade, e não de ainda estar assim, a combater o findar da luz só porque sim. São coisas diferentes.

Quando o defesa central regressou ao FC Porto, em 2019, os seus aí 35 anos erguiam sobrolhos com desconfiança, dúvidas legítimas havia face ao que Pepe ainda poderia oferecer e desde então que encarece as suas oferendas precisamente pela raridade que é no futebol vermos um jogador quarentãoa ser titular em eliminatórias da Liga dos Campeões e de Campeonatos da Europa, sem a mais fina pestana de dúvida a rodeá-lo quanto à sua imprescindível presença na equipa titular do clube e da seleção nacional. Isto enquanto perde músculo ao ano, à década, a cada mínimo descuido na preparação que não lhe passaria pela cabeça ter quando ainda jogava nos seus vintes.

Por muito rico futebolisticamente que Pepe provou ser neste Europeu, em especial nos 120 minutos que cumpriu contra a França - e jogou 410’ no torneio com 41 anos, caso se tenham esquecido -, sabemos que está longe de ter uma carreira isenta de episódios onde a fervura lhe fez saltar a tampa. Ninguém vive incólume, vivalma é imune à crítica, mas assim como há quem evoque o passado para isentar alguns de responderem pelo presente, invocar o mostrado nos dias de hoje para atenuar os erros do passado entra nessa distorção argumentativa. O que não fica torcido, de todo, são as valias deixadas por Pepe com a idade que tem.

Ainda foi, no Euro 2024, o melhor defesa central português, sem dúvida o mais imprescindível na seleção, fosse a escolha de Roberto Martínez ter dois ou três centrais, a conclusão não sai beliscada. O timing de entrada na bola em duelos mantêm-se limado, a técnica de corte ainda certeira, teve a sonda afinada na guarida da área contra cruzamentos, a leitura de jogadas atenta para identificar o momento para sair ao portador da bola ou intercetar o passe. Até a precaver o espaço nas costas, missão já compreensivelmente sofrível quando é exposto a situações de campo aberto, Pepe articulou forma de nem mesmo aí poder ser uma arrelia para Portugal.

Não é de agora que Pepe atribuiu à paixão, ao amor e à dedicação que nutre pelo futebol o segredo da sua longeva presença em campo e da manutenção destas capacidades. A tudo isso terá que se juntar a pitada de sorte a bafejá-lo na genética e o seu aprumo em dormir bem, fazer banhos de gelo e submeter-se às “máquinas de recuperação” que o próprio chegou a louvar já neste torneio. “O fim está próximo”, reconheceu, em Hamburgo, de banho tomado e na zona mista do estádio. “Em breve [vai] dizer” quando o será.

Quando falou, esboçou sorrisos e aparentou ligeireza a tratar do assunto que o atormentará, a ele e a quem lhe deu um peito de amparo à tristeza. Quando os penáltis ditaram a eliminação, Pepe foi confortar João Félix, o capitão sem braçadeira a não deixar sem corrimão o alvo, nos dias seguintes, para quem gosta de personificar as culpas, adiando por um pouco a sua singular comiseração: não tardou a desfazer-se num pranto, os seus olhos que viram a luz da eliminação a encherem-se de lágrimas deixadas cair pelo mesmo cérebro, com origem nas mesmas sinapses, os seus músculos quiçá em perda ativa nesse momento e ele talvez a sentir o tempo a fugir-lhe.

O abraço que envolveu Pepe veio simbolicamente de Cristiano Ronaldo para um afago de semelhantes ser trocado. Enrolados em braços, eram dois homens a presenciarem o findar da própria luz; um deles com choro a enxaguar-lhe a cara, provavelmente por saber que era a sua última vez com a seleção nacional depois de aceitar e admitir que um fim ali, e agora, era condizente com o estado das suas cadentes capacidades - que se livraram de críticas ao longo do torneio; o outro, com 39 anos e cinco meses vividos e 485 minutos feitos no Europeu, que o guardarão como jogador de campo mais utilizado por Portugal no torneio, a não conceder uma pista que fosse acerca da continuidade na seleção, por esta altura aparentemente presa apenas aos ditames da sua vontade.

Nesse momento, a inexorável perda de músculo que tem nome, sarcopenia, e para isto existe o Google, decorria ativamente em ambos, por muito que quem jogue para defender a baliza se tenha mostrado exímio nas funções e quem subsista para tentar marcar golos na outra esculpa o corpo com trabalho de ginásio feito além-campo, no lugar onde o seu rendimento é agora questionado. A injusta causa do idadismo não pode sorver a mesma dose de ambos.

Na nata do futebol europeu de seleções, Pepe despediu-se como um dos melhores defesas centrais do torneio, deixando um rasto de gala. Ronaldo a fazer muitos irem à ubiquidade das estatísticas para verem há quanto tempo não marca um golo de livre, não marca em fases a eliminar ou não dava tão poucos toques na bola.

O tempo é impiedoso, mais cedo do que tarde surge sempre a sua ausência de dó, o tempo abater-se sobre quem o tenta enganar com longevidade, sabendo que tal é impossível. Se o critério for rendimento, Portugal teve em Pepe o maior exemplo de quem retribuiu no campo com razões para se crer que às vezes, por uns breves momentos, ainda resta substância para enraivecer, nos grandes palcos, contra a luz que finda.

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