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A CAN pode já não ser é o que era, mas na sua “desorganização organizada” continua a ser um torneio cheio de magia (e com mudanças em 2019)

A CAN pode já não ser é o que era, mas na sua “desorganização organizada” continua a ser um torneio cheio de magia (e com mudanças em 2019)
GABRIEL BOUYS/Getty
Longe vão os tempos em que um jogo da Taça das Nações Africanas era feito de balbúrdia tática, de golos atrás de golos e muitas surpresas. Hoje em dia, com estrelas como Mohamed Salah ou Sadio Mané e com boa parte dos jogadores a atuarem nos melhores campeonatos da Europa, a prova perdeu alguma da sua fantasia, mas a cor, o talento, a alegria ainda estão lá, porque são inatos em África. Luís Norton de Matos, Olivier Bonamici e Nuno Santos explicam à Tribuna Expresso o que mudou e porque é que a CAN, que passou de janeiro para junho e arranca esta sexta-feira com um Egito-Zimbabué (21h, Eurosport 2), ainda é tão especial

Olivier Bonamici está triste. Pela primeira vez desde se lembra, não vai comentar a Taça das Nações Africanas. Tudo porque a prova, que com a sua cor e improviso, celebrações de golos entusiastas e golos também eles por vezes pouco ortodoxos, tornava mais amenas as nossas frias tardes de janeiro, vai passar a ser jogada em junho. A nova vida da CAN começa esta sexta-feira e só acaba daqui a quase um mês, a 19 de julho. Pelo meio, arranca o Tour. E aqui é que está o bico de obra: é que Volta a França sem comentários do mais português dos monegascos também não é Volta a França e Bonamici ainda não detém o dom da ubiquidade.

O que dava um certo jeito para acabar com a tristeza do comentador, uma das vozes mais distintivas da Eurosport que, desde 1994, de dois em dois anos nos dá o melhor do futebol africano, aquele campeonato que, apesar de tudo, ainda consegue aqui e ali oferecer-nos aquilo a que se convencionou chamar o “futebol em estado puro”.

“Acho que é a primeira vez que estou triste a nível profissional, imaginem. Estou ultra triste. Porque profissionalmente formei-me com a CAN e com a Volta a França”, explica Bonamici à Tribuna Expresso. “Até estou meio emocionado”, diz ainda.

Ninguém nos prepara para termos de escolher entre dois amores.

Ter passado tanto tempo a comentar a Taça das Nações Africanas ajudou, certamente, mas Olivier, na verdade, não consegue dar uma explicação factual para gostar tanto da CAN. “O futebol africano toca-me muito mais do que o futebol europeu e sul-americano, não sei porquê. Adoro o povo africano, tenho uma ligação grande”, conta.

O desconhecido, a magia da descoberta: também é por causa disso que a CAN é tão especial. Mas uma prova de seleções onde estão Mohamed Salah e Sadio Mané, que já não são apenas os melhores jogadores africanos mas sim dois dos melhores jogadores do Mundo no último par de anos, continua a ser assim tão do campo do desconhecido?

Luís Norton de Matos poderá saber uma ou duas coisas sobre este assunto. Além de ter treinado no Senegal no final da década passada e depois ter ajudado a erguer as fundações daquilo que é hoje a seleção da Guiné-Bissau - que se estreou há dois anos na CAN e em 2019, no Egito, repete a façanha -, Norton de Matos acompanhou a Taça das Nações Africanas com comentários na imprensa escrita e na televisão.

“O futebol africano evoluiu bastante nos últimos anos e aquele futebol que todos nós gostávamos de ver na CAN, de uma certa ingenuidade, improvisação, aquele futebol selvagem, ainda não codificado pelos padrões europeus no sentido tático, da organização de jogo, já não existe nas principais seleções”, diz-nos o técnico português de 65 anos, lembrando que “é difícil manter o romantismo” em equipas que muitas vezes têm técnicos estrangeiros e boa parte dos jogadores a atuar na Europa.

“De forma geral a CAN perdeu muita da sua magia a partir do momento em que boa parte dos jogadores estão na Europa”, diz Olivier Bonamici. “Antigamente, nos anos 70, havia uma CAN e quase ninguém conhecia o top 10 de jogadores”, explica o comentador. Hoje, diz-nos Norton de Maton, a CAN já não é o território de balbúrdia tática, habilidade e espontaneidade do gesto, como estávamos habituados: “Hoje há jogos muito táticos. Antigamente ninguém se importava de sofrer três golos porque sabiam que também marcavam três ou quatro e portanto aquilo era um festival, os defesas cometiam erros porque queriam driblar e o público adorava isso. Agora não, já se vêem muitos 0-0, daqueles jogos que uma pessoa até pensa ‘eh pá, isto está um bocado para adormecer’, porque as equipas já se anulam taticamente”.

Parece quase um paradoxo: aumenta a preparação do jogador, diminui a fantasia. “Por estar cada vez mais a jogar na Europa, o jogador africano é tão formatado do ponto de vista tático e já não tem aquela capacidade de criar a magia que criava. Isto acontece nomeadamente nas equipas mais fortes, Senegal, Costa do Marfim, Nigéria”, frisa Nuno Santos, que comenta a CAN para a Eurosport há, segundo as suas contas, “quase 20 anos”.

E nesses 20 anos viu a CAN tornar-se numa espécie de fenómeno de culto para aqueles que procuram nos relvados tantas vezes mal-tratados da maior prova de seleções africanas uma desintoxicação para o chamado futebol moderno. “Hoje em dia há futebol todos os dias e acaba por não ser muito diferente entre si. Temos a Champions, os campeonatos, as taças… as pessoas estão encharcadas e a CAN ainda é um futebol um bocadinho diferente. A forma como se festejam os golos, por exemplo. Lembro-me de um guarda-redes do Congo que dava um salto a imitar uma galinha e as pessoas adoravam. Como adoram os penteados, os equipamentos, como naquela CAN em que os Camarões apareceram com uma camisola de manga cava, que depois acaba proibida. É todo esse folclore que as pessoas acham muita piada”, diz.

Porque, apesar de tudo, das equipas com estrelas mundiais, das seleções em que praticamente todos os jogadores estão na Europa, dos estágios que já se fazem em luxuosas unidades hoteleiras do Dubai, o “ADN do jogador africano ainda está lá”, lembra-nos Nuno Santos.

O ALARGAMENTO

Esta será uma CAN de mudanças. Além da alteração de calendário, de janeiro para junho, o número de equipas também muda significativamente, de 16 para 24, à semelhança do Europeu. Como tudo, as mudanças têm coisas boas e coisas más. Para a tal fantasia de que falámos e esperamos da CAN, até poderá ser boa.

“Com o alargamento vais ter seleções como Madagáscar, Burundi ou Mauritânia, que são estreantes e grande parte dos jogadores destas equipas ou joga em África ou em divisões secundárias na Europa, que é algo que já não se vê num Europeu. É nestas seleções que poderá estar a magia”, explica Olivier, que prevê uma CAN de descoberta de jogadores, ou vá, de ainda maior descoberta: “Já é quase impossível descobrires um jogador na seleção da Costa do Marfim, por exemplo. Agora ninguém conhece um jogador que seja do Madagáscar, perguntas na rua e ninguém conhece. Continuo a ver magia por causa dos países do chamado 2.º escalão do futebol africano”.

Luís Norton de Matos está também expectante com equipas como o Uganda, Zimbabué, Tanzânia ou Namíbia, que mesmo já tendo participado na CAN, continuam a ter muitos jogadores a jogar em campeonatos africanos. “Temos vários estreantes e isso abre a hipótese do mundo conhecer outros talentos, outros futebóis. Estou com curiosidade para ver esse futebol que é muito mais desconhecido”.

O lado mau poderá passar por alguma perda de competitividade da prova, ainda mais quando África ainda está na ressaca de não ter conseguido colocar qualquer equipa na fase a eliminar do último Mundial.

Já se falarmos da mudança para junho, a estrada também se divide. Por um lado, só neste ano, a CAN terá de se bater pelo espaço mediático com pelo menos quatro competições: Mundial feminino, Copa América, Volta a França e Wimbledon - além de perder aquele elemento único e distintivo de se jogar em janeiro. Olivier Bonamici acredita que, para acabar com o falatório e polémicas que sempre existem sobre a dispensa de jogadores para as seleções a meio dos campeonatos europeus, a mudança para junho é “ótima”, mas reconhece os perigos. “Se calha um dia destes haver um Brasil-Argentina na Copa América, isso lixa automaticamente a CAN. Nem que haja um Camarões-Egito nesse dia”.

Tanto Olivier como Nuno Santos acreditam que o nível técnico e de jogo da prova poderá ser melhor com a prova a disputar-se em junho. “Em janeiro, os jogadores que estavam na Europa, nos principais campeonatos, muitas vezes não metiam o pé, com medo de se aleijarem, o que é legítimo”, diz Nuno Santos. Já Norton de Matos prefere ver para crer e teme que muitos dos que chegam da Europa não venham nas melhores condições físicas: “Por exemplo, o Salah e o Mané. Eu não tenho dúvidas nenhumas que eles adorem jogar pelas suas seleções, mas vêm para a CAN com 50 jogos nas pernas. Acho que para o jogador que joga em África, será bom, porque vão sentir-se frescos. Para os outros, vamos ver se não vêm todo espremidos”.

AS HISTÓRIAS

Num panorama futebolístico em que muitas vezes o que apenas parece interessar são os sistemas e a técnica e a tática, por vezes faltam as histórias. Que na CAN são sempre mais que muitas - e é por causa disso que gostamos dela.

Nuno Santos garante que a CAN é a prova que lhe dá mais trabalho, ainda para mais num ano com estreantes e seleções praticamente desconhecidas, mas também a que lhe dá mais gozo. Precisamente por estar cheia de histórias, num continente muito particular.

“Por exemplo, o treinador do Egito há dias levou a equipa ao cinema porque saiu agora um filme novo sobre a Guerra dos 100 anos e aquilo é uma forma de motivar a equipa. E um dos atores do filme é o Hosny, um antigo jogador que chegou a ganhar a CAN e que entretanto se transformou num ator extraordinário - bem, pelo menos para eles. É este tipo de coisas que acho giro”, conta Nuno Santos, que mais para a frente lembra-se de outra das suas histórias preferidas desta edição da CAN: “O Aliou Cissé, selecionador do Senegal, cresceu no mesmo bairro e é amigo de criança do selecionador da Argélia. Jogaram à bola na mesma rua, numa cidade nos arredores de Paris. Acho isto incrível”.

E há as memórias de tantos jogos. “Lembro-me da vitória da Tunísia, em casa, em 2004, com um golo de um brasileiro naturalizado, o Santos. Aquilo quase vinha abaixo. E do Mido, que é substituído na meia-final em 2006 e desata aos pontapés e quase ia bater no treinador…”, relembra Nuno. E, claro está, também há o outro lado da medalha, num continente onde as questões de segurança são muitas vezes um problema. “Pelo lado negativo, o ataque ao autocarro da seleção do Togo, na CAN de Angola”.

De todos os anos a assistir e a comentar a CAN, a Luís Norton de Matos ficou na gravada a emotiva vitória da Zâmbia em 2012. “A Zâmbia era uma daquelas seleções que era quase impossível ganhar a CAN naquele momento e eles vencem a CAN no Gabão, onde 19 anos antes tinha caído um avião que mata boa parte da equipa”. O avião, na verdade, caiu a apenas alguns quilómetros do estádio onde se jogou a final, frente à favorita Costa do Marfim. “Aquela vitória teve uma carga espiritual muito grande, os africanos acreditam muito nisso e foi das coisas que mais me marcou. Por ser uma surpresa e por o treinador, o Hervé Renard, ter dito antes do jogo que queriam honrar aquela seleção e que estava com fé na vitória”.

Já Olivier Bonamici recorda-nos aquele que diz ser “o pior jogo que comentou na vida”. Não por o jogo não ter sido bem jogado, mas por ter corrido particularmente mal ao monegasco: “Eh pá, foi um dia em que estava super cansado e tinha de comentar um jogo da CAN que era Guiné Conacri-Mali. Na equipa da Guiné havia uma série de jogadores que tinham o apelido Koulibaly. E no Mali havia muitos Traorés. Pá, e confundi tudo. Eu estava a comentar aquilo com paixão, mas troquei os nomes todos, era Traoré de um lado, Koulibaly de outro. Foi uma vergonha”.

Mas, no fim das contas, aquela sensação de andar no fio do arame é uma das coisas que nos faz gostar da CAN. “Se comentas um jogo da Champions do Liverpool toda a gente conhece os jogadores. A magia da CAN também é de contar histórias de pessoas e de jogadores que nem toda a gente conhece, porque às tantas estás a comentar um jogo e tens jogadores da 2.ª e da 3.ª divisão”.

Quanto a favoritos, os nomes de Egito e Senegal parecem ser os mais consensuais, com o Egito com a vantagem de jogar em casa e de ter o mais mediático dos jogadores africanos da atualidade Mohamed Salah.

Mas Salah não está sozinho, além de que já não há quem não o conheça. Para Luís Norton de Matos, que aposta na Guiné-Bissau como uma das possíveis surpresas da prova, divertido será ver outros jogadores a despontar - e muitos deles poderão ficar na memória de toda a gente depois desta CAN. “Tenho muita curiosidade em ver o costa-marfinense Nicolas Pépé, do Lille, que está aí na calha para uma transferência milionária. Há um nigeriano de quem já se fala como sucessor do Kanu, o Paul Onuachu, que joga na Dinamarca. O Ismaila Sarr, do Senegal, que foi decisivo no Rennes esta temporada, o François Kamono, da Guiné, o Youcef Atal da Argélia… há jogadores de quem pouca gente fala e de repente podem aparecer”, diz o técnico.

“Uma das coisas que mais me agrada na CAN é descobrir jogadores que ninguém conhece”, conta-nos Nuno Santos. “Olhem este: Farouk Miya. É do Uganda, joga no Gorica, anda lá perdido na Croácia, mas dizem que é uma máquina a jogar. Tenho muito curiosidade em vê-lo. Se calhar é daqueles jogadores que termina a CAN e dá o salto para um clube de maior visibilidade”.

UMA PROVA ESPECIAL

Não há alterações e mudanças ou aproximações aos modelos europeus que possam refutar isto: a CAN ainda é uma prova especial.

E porquê? “A África, por mérito próprio, conseguiu dar ao Mundo jogadores extraordinários. E acho que toda a gente quer continuar a descobrir estes talentos”, diz Luís Norton de Matos. “Acho fantástico, golos de todas as maneiras e feitios, quando há um drible bem feito todo o estádio exulta. E quando focam a cara dos jogadores eles estão sempre a rir. O africano tem isso, é descontraído, se falhou, falhou, para a próxima vai fazer melhor”.

Nuno Santos acredita que o apelo da CAN continua a chamar as pessoas “pela habilidade inata do jogador africano e pela paixão que África tem pelo futebol”. E depois também pelo que não tem muito que ver com a bola a rolar na relva. “A mim fascina-me a desorganização organizada do futebol africano, aquilo parece que está tudo mal e depois tudo funciona. Os Camarões estão em greve, os jogadores angolanos ameaçaram fazer greve, o Mali esteve quase desqualificado, mas afinal vai… epá, gosto disso!”, revela-nos o comentador.

Para Olivier Bonamici, a CAN é, bem, mais do que a CAN: é uma oportunidade para se falar do continente africano e para quebrar preconceitos. “O continente africano ainda sofre de uma grande falta de visibilidade. Pá, o Egito e a Nigéria que têm 10 vezes ou mais habitantes que Portugal e ninguém sabe nada do que se passa nesses países. Na mesma medida em que o Mundial feminino é ótimo porque quebra um bocadinho o machismo que existe na nossa sociedade, a CAN também nos faz lembrar que, uau, existe um continente com outras culturas, outras mentalidades”, diz o jornalista, frisando que “a Europa não é o centro do Mundo e África sofre muito, até porque o racismo no futebol está a aumentar que é uma coisa escandalosa”.

“Na CAN, uma seleção que faça um bom resultado dá uma alegria imensa a países que não têm nada. Durante aquelas três semanas se calhar é a única forma de serem falados”, continua Nuno Santos. “Ninguém fala dos problemas políticos do Uganda ou da Nigéria e durante este período de certeza absoluta que a guerra pára”.

E a guerra, pelo menos fora das quatro linhas, termina hoje, às 21h, no Cairo.

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