

A ocasião podia nem suceder, mas preparou-se. Quem se dedica às logísticas no Sporting atentou à cautela, amiga da prudência que, por sua vez, é conselheira deste tipo de festas, portanto, ao cair da noite de 5 de maio, um domingo, dezenas de convivas reuniram-se numa sala do Estádio de Alvalade. Jogadores, staff técnico, dirigentes e respetivos familiares jantaram com garrafas de cerveja e champanhe a olharem para eles, frescas e prontas a serem abertas, à semelhança de t-shirts com “campeões” estampado e outras nas quais se lia, em inglês, “só os leões rugem como leões”. Não fosse o diabo apetecível presente no Famalicão-Benfica tecê-las, desejo que toda a gente tinha no Sporting, o clube estaria preparado.
Quando, poucas horas depois, os rivais lisboetas perderam, a coroa de 2023/2024 ficou entregue ao Sporting pelo algodão da matemática: com 84 pontos (que podem vir a ser 90), 92 golos marcados (que não é descabido estimar que venham a ser mais de 100), a equipa de Rúben Amorim, o treinador que prontamente se trajou a rigor da celebração, conquistava o seu 20º título de campeão nacional com duas jornadas ainda em falta no campeonato. O sinal de soltura para os preparativos, que já na véspera tinham chegado aos jornalistas, mas por certo vinham de trás, estava dado. Quando a madrugada já convidada a segunda-feira para a mesa, a equipa do Sporting pulava de alegria no palco montado no Marquês de Pombal com um disc jockey, luzes néon, um espetáculo de realidade aumentada e os nomes dos futebolistas projetados na estátua.
Este foi o 5º título de campeão seguido que o Sporting garantiu sem ser à frente dos seus adeptos, em Alvalade
Mais contrastante com 2002 não podia ser. Nessa última vez que o Sporting soube que era campeão no sofá, em cima dos joelhos de quem mandava então no clube houve planos a serem feitos apressadamente. Pelo menos foi essa a impressão que ficou em Luís Filipe. Então companheiro de Mário Jardel, João Vieira Pinto ou André Cruz, o extremo viu no recato do seu lar o jogo que entregaria o título aos leões, um Benfica-Boavista que os axadrezados de Jaime Pacheco não podiam perder, e perderam. “Naquela altura não havia qualquer plano, recordo-me de que estava em casa a ver o jogo e, quando acabou ou estava quase, recebemos uma mensagem para irmos ter ao [hotel] Radisson. Sem saber muito bem o que iria acontecer”, conta, tão surpreso como na altura, quando estava “relaxadinho” em casa.
Então gaiato dos seus 23 anos, Luís Filipe deixou 16 jogos e dois golos nessa época e conta que “não havia qualquer plano”. Quando chegou ao hotel, encontrou os outros jogadores, nem sabiam bem se iriam “com as famílias ou não”, foi “uma coisa organizada no momento”. Dispensadora de planos pré-feitos, a multidão de adeptos encheu a rotunda das celebrações em Lisboa. “Não quis acreditar como é que em tão pouco tempo se tinha juntado tanta gente, foi incrível, só se viam pessoas.” O futebolista, marcador do primeiro golo da história no novo Estádio de Alvalade, inaugurado no ano seguinte, descreve um cortejo de autocarro que se limitou a dar “uma volta ao Marquês” e seguiu para “a Câmara de Lisboa”. Este ano, antes sequer de o Benfica baquear em Famalicão, já havia informação quanto aos pontos de acesso ao palco montado e aos horários estimados no percurso do veículo pesado que transportava a fanfarra da equipa.
Ao contrário de 2002, em que “foi tudo um pouco ao sabor do vento”, a festa de 2024 planeou-se ao centímetro. Mas, consentâneas, as duas celebrações tiveram ordem de soltura fora do campo, o Sporting sagrou-se campeão outra vez no sofá e manteve uma tradição que não faz a barba há mais de três décadas. Desde 1980, quando a equipa treinada por Fernando Mendes confirmou o título em Alvalade, na última jornada, que os leões não experimentavam o frenesim de se tornarem campeões nacionais em casa: em 1982 sê-lo-iam no Estoril, esperaram 18 anos para o serem, em 2000, no Vidal Pinheiro do Salgueiros, em 2002 estava cada jogador no seu poiso e, outro longo interregno depois, o Sporting voltaria a ser campeão em 2021 e em Alvalade, sim, mas sem a companhia dos adeptos por culpa das proibições da pandemia.
O “alívio” que veio 18 anos depois
A 14 de maio de 2000 o mundo verde e branco susteve a respiração. O Sporting chegava à última jornada do campeonato com mais um ponto do que o FC Porto, que vinha de cinco triunfos seguidos na competição. Era “proibido falhar” na deslocação ao terreno do Salgueiros, como recorda Aldo Duscher, internacional argentino que foi opção inicial do técnico Augusto Inácio em 28 das 34 jornadas da temporada.
Ao intervalo, o nulo deixava tudo em aberto. Mas aquele Sporting tinha uma “grande arma”, lembra Duscher, referindo-se ao perigo que vinha das botas de André Cruz quando o adversário cometia faltas à entrada da área. Um livre do brasileiro abriu caminho para o triunfo, Kwame Ayew aumentou a vantagem, o próprio Duscher fez o 3-0 e o defesa central selou a goleada que matou a fome do leão.
Em 2000, o jejum quebrou-se em Vidal Pinheiro, no norte. Em 2002, o título chegou com os jogadores no sofá
Quando o jogo terminou, o sentimento que dominou o argentino não foi a felicidade, a euforia ou o doce sabor a glória. Os 18 anos pesaram e, portanto, “foi uma sensação de alívio enorme, um suspirar de tranquilidade, o fim de um trauma”, relata quem chegou a Portugal quando tinha justamente 18 voltas ao Sol. Logo aí, recém-entrado na maioridade, Duscher notou “a vontade enorme de quebrar o jejum”, o que colocava “uma pressão tremenda”. Tudo se foi embora em Vidal Pinheiro.
A vitória pode ter mil e um aromas diferentes, molda-se às circunstâncias de quem a leva para casa. Em 2000 o leão andava faminto, mas em 1982 não era bem assim. Vinha do título de 1980, mesmo o de 1974 não era uma vaga recordação. Ao contrário de Duscher, Carlos Xavier sublinha somente “a festa e alegria enormes” daquele 16º título do clube pelo qual realizou 334 partidas.
Naquela campanha, Xavier, de 20 anos, teve a “sorte” de ser aposta de Malcolm Allison, o inglês que chegou a Alvalade e “revitalizou tudo”. “Trouxe métodos diferentes, estava muito à frente, um pouco à semelhança do Eriksson”, assegura o futebolista, que se estreou pelo Sporting em 1980 e se retiraria dos leões em 1996.
Em 1982, o então jovem Carlos Xavier foi jantar fora com a equipa após garantirem a conquista no Estoril
Tal como em 2024, o festejo de 1982 deu-se a duas jornadas do fim. E o palco da alegria em terreno alheio foi o do Estoril Praia, onde a equipa de Rúben Amorim disputará (sábado, 18h, Sport TV1) o seu primeiro compromisso depois da ida ao Marquês de Pombal.
Uma das “novidades” que Allison trouxe foi a abolição dos estágios antes dos jogos em casa ou perto de Lisboa. “À moda inglesa”, a equipa reunia-se para almoçar e depois ia a jogo. Foi assim a 9 de maio da 1982, quando um clássico climatérico da Amoreira se uniu rumo ao êxito verde e branco: “Estava um dia muito ventoso, então um pontapé do Mészáros aproveitou a boleia e isolou o Jordão, que marcou”, descreve Xavier, em alusão ao segundo dos três golos do encontro do título. Os outros foram de Manuel Fernandes, o segundo melhor marcador da história do Sporting, homenageado nas vésperas da conquista de 2024.
O jantar “para os lados de Algés” e o banho a Roquette
A 26 de maio, no Jamor, o Sporting tentará mais semelhanças com 1982, juntando a Taça ao campeonato. “Fizemos a dobradinha, foi barba e cabelo”, graceja Xavier, que falhou a final contra o SC Braga por estar ao serviço da seleção no torneio de Toulon.
Carlos é o 14º futebolista da história leonina com mais jogos realizados pela equipa principal. A conversa ao telefone decorre em tom baixo, para não acordar o “netinho” que estava a dormir. O passar do tempo dificulta o rebobinar da cassete rumo às celebrações de há 42 anos, quando ainda não havia uma festa formal e organizada no Marquês de Pombal.
Do Estoril, a equipa foi “jantar para os lados de Algés ou do Restelo, por aí”, localiza Xavier. Depois foi para o antigo estádio, num percurso que durou “umas horinhas largas”, devido aos adeptos que se iam cruzando pelo caminho, saudando o coletivo que tinha Manuel Fernandes, Jordão e António Oliveira como grandes craques.
Terminada a seca de 18 anos, tudo foi diferente em 2000. Antes do “alívio”, a banda de Duscher, Peter Schmeichel ou Beto Acosta já foi para o campo do Salgueiros com uma “brincadeira em mente”. José Roquette, presidente, e Luís Duque, diretor desportivo, andavam sempre de fato, “todos bem compostos e arranjadinhos”, retrata Duscher. Então, “mal os dirigentes entraram no balneário”, foi-lhes “lançado um balde cheio de gelo em cima”. Festa molhada, festa abençoada, como provam as imagens do arquivo do Expresso captadas num tempo em que fotógrafos alheios ao clube podiam entrar nos balneários em dia de festa.
A viagem de regresso a Lisboa foi “feita a passo de homem”. A multidão impedia que os quilómetros passassem, mas Duscher lembra-se da morosidade com carinho: “Não tínhamos pressa de chegar, desfrutávamos da viagem. Eu não queria que o tempo passasse, só via caras felizes, como se não acreditassem que aquilo estava finalmente a acontecer.”
Mesmo em plena pandemia e após uma vitória em Alvalade, sem adeptos, o autocarro dos leões foi ao Marquês
A euforia do momento levou a equipa a fazer uma pequena volta a Lisboa. Duscher conta que “as solicitações para que a equipa fosse a eventos não acabavam”. No serão dos festejos deslocaram-se ao estádio, foram recebidos na Câmara Municipal de Lisboa, mas o momento mais icónico decorreu no Marquês de Pombal. Uma grua içou Ivaylo Iordanov até ao topo da estátua que está no centro da rotunda, tendo o búlgaro atado um cachecol à volta do leão que contempla, majestosamente, a Baixa da capital.
Dois anos contaram-se e o Sporting voltaria a celebrar. Luís Filipe não se esquece do que mais o impressionou em 2002, pasmou com a vista para a Avenida da Liberdade, onde “só se viam pessoas” e “não havia mais nada de um lado ao outro de toda a largura”. Nos festejos destes últimos cinco títulos, o “mar de gente” descrito pelo antigo jogador foi visão comum. Até no sui generis campeonato de 2021, envolto nas amarras da pandemia, que se jogou e concluiu com adeptos a serem barrados de entrar nos estádios de futebol devido às restrições causadas pela covid-19, houve autocarro carregado com a equipa do Sporting no seu topo no dia em que muitas das proibições então impostas pelo Governo foram quebradas.
Milhares de adeptos levaram as caras tapadas por máscaras para o Marquês de Pombal, onde a comitiva leonina apenas foi para dar uma volta à rotunda e regressar a Alvalade, onde, sim, tinha confirmado o título em casa. Mas sem adeptos essa conquista no próprio estádio não é a mesma coisa. Como também disse Luís Filipe: “Ganhar no estádio tem outro sabor, estás muito mais próximo dos adeptos no final, há aquela emoção e adrenalina com que estás no jogo que faz com que os festejos sejam mais efusivos.”
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