Numa manhã reparamos num carro cor de laranja. Na hora de almoço, vemos outro. No fim do dia num terceiro. Como vivemos num Portugal em que todos os carros são cinza ou pretos, é provável que comentemos em casa que “agora” há mais carros cor de laranja. Essa ilusão de frequência (e é uma ilusão porque de facto não fazemos ideia se há mais carros cor de laranja) tem o curioso nome de fenómeno de Baader-Meinhoff, a partir do grupo terrorista alemão dos anos 70, porque alguém ouviu esse nome duas ou três vezes num só dia e conclui que só falava disso. Como a sensação precisava de uma designação, ficou fenómeno de Baader-Meinhoff.
No nosso futebol em cada duas conversas, uma é sobre Jorge Jesus e não fazendo ideia se assim é, reivindico o meu direito ao meu próprio fenómeno de Baader-Meinhoff. A meu favor ser impossível conceber um futebol português dos últimos dez anos sem Jesus, as suas frases e palavras, as suas manias e particularidades, os seus jogos mentais e, claro, as suas táticas. Desde que foi para o Benfica, vindo do Braga, em 2009, não terá havido semana em que não tenha estado numa capa de um jornal desportivo, quase sempre com tempero polémico ou provocatório, porque Jesus joga o seu próprio jogo e tem sido assim quase desde que começou. Em 2007 treinava o Belenenses e perdeu 1-0 com um Real Madrid de Casillas, Cannavaro ou Robinho.
No fim, JJ não gostou do Real e disse o que pensava: “É preciso jogar mais. Se não o faz, o problema é do treinador. Com os jogadores dele, dava-lhe três de avanço, mudava aos cinco e acabava aos dez.". Que é como quem diz, dêem-me jogadores como aqueles e saiam da frente.
Ao longo de uma carreira longa e persistente em equipas de segunda linha, vítima da sua falta de aristocracia ou costela estrangeira, Jorge Jesus sempre foi um treinador da mobília do futebol português, embora nunca tenha sido um deles, num processo de marginalização voluntário que acabou por compensar quando Luís Filipe Vieira o escolheu para tentar ser campeão de modo consistente. Muitos anos antes, o Benfica tivera outro treinador do povo campeão (Toni) e o Porto até foi bi-campeão com Vítor Pereira, mas foi com Jesus que os autênticos homens do futebol – os “mister” - tiveram êxito retumbante no futebol moderno.
Depois dos estrangeiros, depois dos licenciados e teóricos (Queiroz, Mourinho e sucedâneos), Jesus foi o primeiro verdadeiro mister, homem dos pelados de gravilha e dos sacos de bolas às costas, da sandes de fiambre e do Sumol de ananás, das chicotadas psicológicas em clubes com campos que pareciam batatais, a conseguir a glória. Também foi o único. Outros treinadores de estirpe mister, como Quinito (que chegou a estar seis meses no Porto), Manuel José (que esteve duas vezes no Sporting e uma no Benfica) ou Cajuda (que nunca chegou a um grande) nunca o conseguiram.
Até o nosso jornalismo o descobrir verdadeiramente quando foi para o Benfica, Jorge Jesus até nem era um dos cromos mais à mão. Num Portugal gozão de alvos fáceis, o futebol sempre forneceu bastantes e jornalismo e comentarismo nunca se fizeram rogados. Ou era Gabriel Alves e o seu português colorido do pé mais à mão, ou João Pinto do FC Porto a ler o livro em cima da mesinha de cabeceira e a reservar os seus prognósticos para o fim, ou a faca de dois legumes de Jaime Pacheco. Não admira que mal tenha chegado ao Benfica e a uma espécie de senioridade inesperada, Jesus, com as suas mil e uma palavras inventadas em conferências de imprensa onde sempre – ou quase sempre – respondeu a tudo, passou a animar o pagode.
Dificilmente um homem estará mais distante de Jesus que Shakespeare, mas o certo é que este inglês de quem se sabe tão pouco também inventou palavras (para cima de 1700). Já de Jorge Jesus sabe-se bastante, embora num daqueles latifúndios de preguiça do nosso coletivo, se pense pouco e se reflita ainda menos a propósito do que ele é ou representa. Costuma ser assim quando alguém se parece demasiado com a sua caricatura e até é o primeiro a rir de si, embora até certo ponto: ainda há poucas semanas Jesus fez questão de repetir “peanuts” duas vezes, corrigindo-se muito anos depois de um “piners” que ainda hoje nos faz sentir superiores a um homem que conquistou mais do que nós, se esforçou mais do que nós, aguentou muito mais pressão do que nós e ganha mais dinheiro do que alguma vez ganharemos.
Num país com infinito amor ao amor que os estrangeiros têm por nós, Jesus cometeu o pecado de nunca ter ido treinar para fora. Diz-se que não sabe línguas. Quando se importavam suecos ou checos para treinar (para quem não anda atento ao futebol, hoje em dia os treinadores portugueses são merecidamente a primeira escolha de quase todas as equipas), a língua não era problema porque havia intérpretes e tanto assim foi que Mourinho se transformou no mais afamado e rico intérprete da história dos intérpretes de treinadores que não falam a língua dos jogadores.
Nos seus seis anos de Benfica e nos três que leva de Sporting, Jesus tem significado muito futebol, muita vitória e algumas derrotas, dezenas e dezenas de jogadores, muitos negócios excelentes para os clubes onde está, transformações impositivas de jogadores anónimos em craques (DiMaria, Matic, Ramires, Slimani, João Mário, Bruno Fernandes, Bataglia) e alguns erros obtusos (o principal sendo o guarda redes Roberto). Se quiser trabalhar a sua posteridade, Jesus também pode fazer um álbum de recortes com os inúmeros elogios de jogadores dos vários clubes por onde passou (é ler a entrevista de Ruben Amorim nesta Tribuna) e deverá evitar falar do assunto da aposta da formação, que é uma frase que no futebol português significa “meter miúdos do clube na primeira equipa”.
Aquele que é apontado como um dos grandes defeitos de Jesus – pedir camionetes de jogadores aos seus presidentes – é na verdade uma qualidade que não desdenharíamos ver numa biografia de alguém que admirássemos: saber obter recursos dos acionistas ou dos CEOs é uma arte em si mesma, como sabem aqueles que entendem que dez mandriões com retroescavadoras farão sempre mais buracos que dez operários fortes e motivados com pás.
Ao longo de todos estes anos, nenhuma outra característica sua é tão forte e notória como os efeitos do seu egocentrismo no seu comportamento, a sua vaidade, a sua soberba. Ainda hoje há sportinguistas que o responsabilizam por ter perdido o campeonato para Rui Vitória no seu primeiro ano, porque espicaçou o Benfica, acusando a equipa de ser um Ferrari sem piloto à altura. Unidos contra a altivez daquele que era e provavelmente ainda é o português com o maior salário em Portugal, os seus ex-jogadores impediram-no de ser campeão no seu ano de estreia no que se diz ser o seu clube do coração e onde ele e o seu pai chegaram a jogar na primeira equipa.
Por causa dessa vaidade, Jorge Jesus já se auto-intitulou o mestre da táctica e assume-se como inventor de processos de jogo (como os bloqueios dentro da área a la andebol), mas o que todos parecemos querer são as suas gaffes e as suas tiradas. Não acredito que Jorge Jesus goste que façam pouco dele, mas também é provável que se rale cada vez menos com isso. De origem humildes, é um homem com visual de guitarrista veterano de banda clássica de Hard Rock há demasiado tempo para perder tempo com qualquer coisa que não seja aquilo que quer na vida e que é – parece-me - ser reconhecido como o melhor. E será o melhor? O que é ser o melhor?
Sendo um dos grandes representantes daquela espécie comummente designada de “homem do futebol”, Jorge Jesus é alguém convencido é mais do que isso e por isso é mister de si mesmo, um homem sem seguidores, apesar dos elogios até do filho do cunhado do sogro do colega da tia da madrinha da mãe daquele jogador que garante que JJ foi o melhor treinador que alguma vez teve e a pior pessoa que conheceu no mundo da bola.
A caminho dos 64 em julho, Jesus só come peixe, deixa-se fotografar a fazer madeixas no cabelo, masca pastilha elástica durante os jogos e dá sempre a tremenda impressão de baquear quando está a perder e se entusiasmar quando está a vencer, como se tivessem de ser os jogadores e os adeptos a puxar por ele. Longe de ser reputado como um magistral leitor de jogo e um insuperável fazedor de substituições, o certo é que consegue que algumas das suas equipas joguem um magnífico futebol atacante de elevada “nota artística” (nas suas próprias palavras pois então).
Essas mesmas equipas têm fases de apagamento que revelam que Jesus, como todos nós, mantém alguma falta de noção acerca do limite das suas capacidades. Acredito que os títulos lhe deem gozo, mas que afirmações como as do jogador Aquilani, que nunca foi sequer um indiscutível do amadorense, lhe preencham mais a tal solidão interior inerente aos que se distinguem. O jogador, que esteve no Sporting com Jesus, disse que taticamente o treinador português está entre os melhores e afirmou-o não a um jornal português, mas numa entrevista ao Gazzetta dello Sport. Não o precisava de fazer porque as suas carreiras não se voltarão a cruzar.
Como qualquer um que se julga melhor que os outros naquilo que faz, resulta evidente que JJ se quer fazer pagar acima de tudo o que seria imaginável, também porque essa é prova demonstrada que sim, que é melhor que os outros. Este suposta cobiça também é tida como defeito, mas não queremos o mesmo para nós e para os nossos filhos, que nos paguem segundo o nosso valor?
Talvez valha o ganha mesmo. Jorge Jesus começou a treinar em 1989, tem bem mais de 900 jogos na carreira e continua a ser o mais persistente, competente, interessado e motivado treinador de futebol no nosso campeonato. Em três anos no Sporting ainda não foi campeão, o que também significa que pode muito nunca o ser.
Verdadeiramente, e falando de troféus, venceu dois em 11 possíveis, faltando decidir-se a próxima Taça de Portugal. Claro que é pouco, mas lembremos que nas últimas décadas só na fase Paulo Bento se venceram mais troféus (embora zero ligas também) em Alvalade, um clube com uma incrível massa adepta, um ecletismo único, mas distante de ser tão ganhador no futebol profissional como Benfica e FC Porto.
No Sporting, que nos seus três anos se tornou num clube de futebol pelo menos paritário com Benfica e Porto, Jorge Jesus tem sempre elogiado sócios e adeptos. Mais do que títulos, conquistas, vitórias, exibições, valorização de jogadores ou momentos divertidos, o que Jota Jota mais tem dado aos sócios e adeptos é um respeito que assinala que compreende, valoriza e aceita o amor que os sportinguistas têm ao seu clube e a grandeza que lhe atribuem.
Acredito que Jorge Jesus é melhor treinador desde que está no meu clube. Mais sagaz, mais crescido e mais sereno, como se viu no episódio recente entre presidente e jogadores. Sem estar contra nenhuma das partes, nem estar desalinhado, aproveitou para se elevar e beneficiar da sucessão de vitórias que se seguiram. Calculismo? Ratice? Cobardia? Ao contrário. Como disse Confúcio, perceber qual é a coisa certa e não o fazer é que é cobardia.
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