Daniel e a banda dos canhotos

Debaixo de chuva, o Arouca-Sporting foi um belo jogo de futebol. Venceu a equipa de Rúben Amorim, que tocou a música saída da canhota de alguns rapazes, principalmente de Daniel Bragança e Pablo Sarabia
Debaixo de chuva, o Arouca-Sporting foi um belo jogo de futebol. Venceu a equipa de Rúben Amorim, que tocou a música saída da canhota de alguns rapazes, principalmente de Daniel Bragança e Pablo Sarabia
Jornalista
Os adeptos nem gritaram como se grita a bebedeira do golo. Matheus Nunes riu-se. Os defesas estavam descontraídos. Pablo Sarabia talvez se tenha arrependido daquele soco no ar que denunciava algo munido de alívio e orgulho. A bandeirola estava a fazer cócegas à cave do céu. Não contava.
Mas o auricular do árbitro, qual pivot que espera as novidades por parte dos repórteres num lugar importante, não sentenciara a situação ainda. Afinal, Matheus Nunes, o novo menino da seleção portuguesa, estava em jogo por 27 centímetros e o Sporting celebrou o um-zero, com abraços honestos. Não foi nada em vão, menos o grito comedido de quem se habituou à timidez desconfiada na hora de celebrar.
A tal maquineta que revolucionou o futebol salvou um dos golos mais bonitos da época. E vale a pena puxar o filme atrás...
Uma receção de Daniel Bragança, a surpresa da noite, permitiu-lhe ficar de frente para o jogo, quebrar a pressão dos grandiosos vigilantes que por ali andaram o jogo todo, acelerando a bola pela direita. Sarabia avançou, tocou para dentro, para Paulinho, que encontrou Nuno Santos pela esquerda. O ala cruzou para o segundo poste onde já estava Sarabia, que, com um toque que só costuma estar ao alcance dos grandíssimos futebolistas, escancarou a baliza para o descontraído e faminto Matheus Nunes. A beleza conta e este golo da banda dos canhotos foi bonito.
O Sporting começava assim a deslocação a Arouca, já depois de um remate perigoso de Pablo Sarabia, cada vez mais ligado e conhecedor das geometrias e movimentos alheios. Este seria um bom jogo de futebol e logo debaixo de chuva, que, quando a técnica não sai beliscada, dá outro encanto à coisa.
O Arouca de Armando Evangelista, que tentava defender à frente, é competente, tem gente boa de bola, mas andou reticente quanto a defender com 5 ou 4 defesas, ficando Kouassi Eboué num inglório limbo. E isso, até ser corrigido, deu alguma vantagem aos visitantes.
Rúben Amorim fez algumas alterações. Na defesa contou com Matheus Reis e Ricardo Esgaio como centrais perto de Sebastián Coates, que fazia o jogo 250. Nuno Santos fez a ala esquerda, Daniel Bragança jogou perto de Palhinha, acabando por ser Matheus Nunes a jogar um pouco mais avançado, o que prejudica a sua capacidade de pegar na bola de frente para o jogo e transportá-la com uma qualidade e rotação muito satisfatórias. Perdeu influência, apesar do compromisso do costume.
Antes da meia hora de jogo, Leandro Silva, que encantou cada vez que tocava na bola, isolou o palestiniano Oday Dabbagh, um senhor que vive na vertigem do fora de jogo, a morder a sombra da sombra dos defesas rivais. O avançado desviou de Adán, mas a bola saiu ligeiramente ao lado. O duelo seria reeditado pouco depois, sempre com vantagem para o guarda-redes espanhol, que também é canhoto, por isso calha bem na tal banda dos zurdos.
O intervalo chegou depois de Paulinho e Coates falharem um golo que parecia cantado e após Pablo Sarabia ter a sua disputa, em dose dupla, com Fernando Castro, o guarda-redes brasileiro da casa que assinou uma interessante exibição, com exceção para um capítulo na segunda parte. O apito chegou e a chuva continuava a fazer das suas, a amansar a relva e a tocar a música do inverno.
Após o intervalo, já com uns minutos da segunda parte queimados, um canto para o Sporting deu origem a um contra-ataque furioso do Arouca, que aproveitou o facto de a defesa adversária estar tão destapada. André Bukia, de longe um dos melhores em campo, estava posicionado numa zona-chave, recebeu e desatou a correr. Galgou, galgou e galgou, até que entrou na área do Sporting; a seguir cruzou a bola para o meio, Adán ainda evitou um primeiro remate, mas nada pôde fazer contra a recarga de Dabbagh, o tal homem-Inzaghi que gosta de pisar a linha que liga os outros com as camisolas diferentes.
Antes que o jogo complicasse demasiado e a cabeça começasse a pensar o que não devia, Nuno Santos meteu mais um golo, pela esquerda, depois de um passe de Sarabia. A jogada teve origem na canhota de Daniel Bragança, um miúdo que merecia um texto inteiro só para ele. Não é só a elegância, o gesto vagaroso e sedutor, é a utilidade das ações, as ajudas que presta e os supostos riscos que corre para encontrar soluções. Já fazia tudo isto no Estoril Praia, na Segunda Divisão. Quando teve de fazer uma falta para travar o quase imparável Bukia, não hesitou, alegrando os rigorosos senhores do pragmatismo, os tais que vão desconfiando de quem tem pouco músculo e velocidade. Bragança, com umas improváveis botas vermelhas, encheu o campo, principalmente com a bola de futebol nos pés. No início desde deporto, as pessoas juntavam-se porque aquela gente que empurrava e despachava a bola com os sapatos, algo tão inusitado, os entretinha ou emocionava. Ainda vamos a tempo da emoção.
Falta referir que neste golo Fernando Castro, o guarda-redes do Arouca, não correspondeu ao nível da sua prestação até ali. O jogo continuaria interessante, menos quando um sururu, à passagem do minuto 60, azedou as coisas, levando até Rúben Amorim a retirar do campo Pedro Porro, que tinha os olhos a admitirem coisas que não deviam. Neto foi para central, Esgaio viajou para ala.
Se houve momentos em que o Sporting até trocou a bola, tentando congelar a coragem alheia, houve também alturas em que o meio-campo do Arouca se impôs, com Pedro Moreira e Leandro Silva à cabeça, o que levou o técnico sportinguista a acabar o jogo com Ugarte e Palhinha a fecharem a rota principal do mapa do golo. Bukia, esse artista da República Democrática do Congo, jogou até rebentar e ser substituído.
O Sporting volta assim a vencer, depois de ter perdido em Dortmund para a Liga dos Campeões, e alcança os 20 pontos em 24 possíveis, tal como o FC Porto, que esta tarde ganhou ao Paços de Ferreira em casa. O Benfica joga no domingo, em casa, contra o Portimonense, às 18 horas.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: htsilva@expresso.impresa.pt