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A história do voo supersónico de Rúben Amorim até ao sucesso

A história do voo supersónico de Rúben Amorim até ao sucesso
RODRIGO ANTUNES/Lusa

Rúben Amorim é a nova grande estrela do futebol português e um dos nomes mais falados em Inglaterra. Futebolista atormentado por lesões e com medo de falhar, transformou-se um treinador entusiasmante. Esta é a história da ascensão do menino que era louco pelo Benfica e acabou a enlouquecer de alegria os adeptos sportinguistas

A história do voo supersónico de Rúben Amorim até ao sucesso

Tiago Carrasco

Jornalista

Ao aperceber-se de que a sua consulta médica estava atrasada, Nuno Gomes, antigo jogador do Benfica, entrou no El Corte Inglés, em Lisboa, para beber um café. Enquanto saboreava a bica, identificou uma cara conhecida entre os clientes: Rúben Amorim, na companhia dos adjuntos Carlos Fernandes e Adélio Cândido, sentados à volta de uma mesa pejada de folhas de papel rabiscadas: “Estavam a fazer os planos de treino. Eu ainda nem sabia se o Rúben ia mesmo ser treinador ou não, pelo que fiquei surpreendido”, diz Nuno Gomes ao Expresso. O ex-avançado, um dos amigos mais próximos do atual treinador do Sporting, perguntou-lhe se não tinha outro sítio para fazer aquilo. “Respondeu-me ao jeito dele, brincalhão, que era tranquilo, porque já ninguém o conhecia.”

Nos idos de 2019, o Rúben Amorim sentado à mesa no coração de Lisboa estava há três anos afastado da ribalta. Esse hiato, entre o momento em que pendurou as chuteiras e o estágio no corpo técnico do Casa Pia — clube que então disputava o Campeonato de Portugal —, foi por ele usado para se preparar para o ofício de treinador. Começou a tirar o curso na Associação de Futebol de Lisboa e uma pós-graduação em Treino de Futebol de Alta Performance na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), culminado com um estágio de uma semana em Manchester, orientado por José Mourinho. Simultaneamente, recorreu a um psicólogo, especial­mente para moderar algumas reações intempestivas — os amigos dizem que continua a “ferver em pouca água”, mas que passou a controlar melhor os impulsos. “Um dos problemas que tenho é mesmo esse: não consigo controlar a minha linguagem corporal quando algo está, a meu ver, incrivelmente errado”, dizia Amorim ao Expresso em novembro de 2017. Ainda tinha dúvidas sobre o seu talento como gestor de equipas. “Não me via como dirigente, muito menos como empresário, não tenho feitio para isso. [...] Não sei se vou ser bom [treinador], se vou ser mau, mas vou ser.”

Passaram-se menos de sete anos. Contra todas as probabilidades, Rúben Amorim, de 39 anos, é hoje idolatrado no Sporting, maior rival do seu clube de infância, o Benfica. Acaba de conquistar o segundo título de campeão nacional e pode adicionar-lhe a Taça de Portugal, cuja final disputa no próximo domingo contra o FC Porto. Bateu o recorde de pontos do Sporting na Liga e somou por vitórias todas as partidas jogadas em casa. Contudo, mais do que ter conquistado os desejados troféus para um clube desabituado a vencer, o grande feito de Amorim é outro: ter arrebatado os corações dos adeptos sportinguistas, sem para tal necessitar de acicatar o ódio dos seus oponentes. “Recorrendo ao bom humor, humildade e a um invulgar talento para comunicar, ele conseguiu tornar-se uma figura unânime, merecedora de respeito e simpatia até dos rivais”, diz Quim, antigo colega de equipa no Benfica e no Sporting de Braga.

Os seus dotes oratórios vêm de trás — na seleção, Cristiano Ronaldo costumava chamá-lo de “poeta”, por ser o mais eloquente —, mas foram limados com hábitos de leitura. Amorim habituou-se a consumir livros de história, filosofia e, essencialmente, biografias de líderes icónicos: as prediletas são as de Barack Obama e de Steve Jobs. Com os seus melhores amigos — o cunhado Luís Filipe, ex-futebolista, Nuno Gomes e o seu irmão, Tiago Ribeiro, Hugo Viana, diretor desportivo do Sporting, e Daniel Oliveira, diretor de programas da SIC, e respetivas esposas —, tem animadas discussões sobre política. “Diria que, pelas suas opiniões, ele é mais de esquerda”, afirma Tiago Ribeiro. “E isso até se nota na forma como trabalha. Privilegia sempre o ‘nós’ em relação ao ‘eu’. Por exemplo, quando foi para o Braga B, houve uns meses sem trabalho em que os seus adjuntos ficaram sem ordenado, e ele encarregou-se de que não lhes faltasse nada.”

Uma veia sindicalista que já tinha revelado no Catar, quando, na sua temporada de despedida enquanto futebolista, representou o Al-Wakrah. Os seus colegas tinham salários em atraso enquanto ele, como estrangeiro, continuava a receber: “Disse-lhes que não podia ser, que tinham de bater o pé e parar de treinar”, contou, em entrevista ao programa “Maluco Beleza”, em finais de 2017. Já como estagiário do Casa Pia, arranjou uma casa em condições para o seu defesa central, Deritson Lopes, que tinha de trabalhar de noite numa multinacional de fast-food para sustentar os três filhos. Pagou-lhe a renda durante um ano. “Foi um anjo na minha vida”, disse o atleta ao jornal “A Bola”.

Amorim chegou ao Casa Pia em 2018, pela mão do diretor desportivo Carlos Pires. “Veio perguntar-me se podia estagiar connosco, até porque vivia ali perto, num condomínio junto à Calçada de Carriche”, diz Victor Franco, presidente do clube de Pina Manique. “Tinha jogado no Benfica, tinha sido internacional, então disse-lhe que, se viesse para ajudar, seria muito bem-vindo.” Coordenado com o treinador principal, José da Paz — que imediatamente entendeu as mais-valias resultantes da sua presença —, Amorim começou a implementar os seus métodos. “Não é um treinador como os outros”, diz Franco. “Como é novo, fala a linguagem dos jogadores. Quando perde, nunca culpa os jogadores, nem ninguém, vê sempre o balneário como um todo. Começámos a perceber que os jogadores estavam muito motivados.”

Pouco dado a amadorismos no futebol (as únicas vezes que foi expulso enquanto futebolista, ambas no Catar, foi por ter perdido a paciência com a falta de profissionalismo de colegas e adversários), o técnico lisboeta era intransigente quando faltava o gás, a água ou equipamentos indispensáveis, o que não era incomum. “Ele queria banhos de gelo depois dos treinos para a recuperação muscular dos jogadores, mas nós não os tínhamos. Então, encarregou um elemento da equipa técnica de trazer gelo suficiente todos os dias”, recorda o presidente dos “gansos”.

O campeonato começou mal: duas derrotas nas duas primeiras partidas, a última das quais em casa, contra o Moura. No treino seguinte, a 21 de agosto, Rúben Amorim sugeriu substituir o 4x4x2 que a equipa utilizava por um 3x4x3, com três defesas centrais e dois alas ofensivos, sob o pretexto de melhorar a transição defensiva. Assim nasceu o sistema tático que hoje aplica no Sporting e que foi apurando e moldando de acordo com os jogadores à disposição. “Ele caprichava muito na parte defensiva, a linha de três centrais tinha de estar sempre alinhada, com muito rigor, e toda a gente devia recuperar. Ele não se concentrava tanto na parte ofensiva, que é mais fácil de trabalhar”, recorda Bruno Simão, defesa esquerdo desse Casa Pia, que passou a alinhar a central. “Começámos a jogar à bola que foi uma coisa linda. Dava gosto. Quando vejo hoje o Sporting, constato que muitos dos processos são os mesmos que tínhamos ali: a bola de saída, os cantos, a saída de pressão. Tudo começou connosco.”

Simão soube que Amorim ia estagiar para o Casa Pia quando, aos 34 anos, estava a recuperar de um acidente de moto que o havia deixado uns dias em coma. Os médicos consideraram-no inapto para a prática desportiva. Ainda assim, resolveu oferecer os seus préstimos ao seu amigo, que conhecera nas escolinhas do Benfica, com 8 anos, e com quem passara grande parte da sua infância. “Inicialmente, recusou. Disse-me que não devíamos confundir amizade com trabalho e que, para mais, eu tinha estado quase a morrer uns meses antes.” Passados três dias, Amorim enviou-lhe uma mensagem a perguntar como é que ele estava. “Vi logo que ele não queria saber da minha saúde, queria é que eu fosse com ele para o Casa Pia. O clube não podia pagar o que eu precisava, mas ele atravessou-se por mim para chegarem aos 850 euros.”

A relação umbilical que os unia não foi sinónimo de facilidades para Simão. “Deixou-me bem claro que, lá por sermos amigos, eu não seria mais do que os outros”, diz. O Casa Pia acabaria por sagrar-se campeão nessa temporada, já com o técnico Luís Loureiro ao leme. Rúben Amorim só pôde celebrar por videochamada. Tudo porque o técnico decidiu abandonar a equipa, depois de o clube ter sido penalizado com uma multa de 14 mil euros, a derrota em dois jogos e cinco partidas à porta fechada, por ele, na condição de estagiário, ter dado indicações para dentro de campo no triunfo perante o Real Massamá (3-2). Amorim também foi multado em 2600 euros. A penalização acabou por ser revertida, mas Amorim já não estava, o que causou muito tristeza aos jogadores. “Nós exigimos ao diretor desportivo que o novo treinador aplicasse exatamente os mesmos métodos que o Rúben, e correu bem”, lembra Bruno Simão.

Dois anos volvidos, Simão viu na televisão que o seu amigo estava prestes a ser contratado pelo Sporting. Escreveu-lhe uma mensagem: “O que é que estás a fazer à tua vida, mano? Não te metas nisso.” Amorim respondeu-lhe que “não se sentia pressionado, que o clube estava tão mal que, pior, certamente, não ficaria”. A memória de Simão recuou até aos seus 14 anos. Numa terça-feira, ele e Rúben Amorim, dispensados da formação do Benfica por decisão do presidente João Vale e Azevedo, encontravam-se às portas de Alvalade para se apresentarem num treino. “Enganámo-nos. O treino era na quinta-feira e tivemos de voltar para trás. Foi um alívio. Éramos, naquele tempo, tão doidos pelo Benfica que não queríamos jogar no Sporting”, recorda o amigo.

De nota nas meias e braço ao peito

“As minhas prendas de aniversário, em criança, eram quase sempre ir ao Estádio da Luz”, disse Rúben Amorim, na sua conversa com Rui Unas, em “Maluco Beleza”. A sua ligação ao Benfica é tão precoce que o pai, ao Mais Futebol, chegou a dizer lembrar-se de lhe mudar as fraldas nas bancadas. Nascido a 27 de janeiro de 1985, Rúben Amorim cresceu em Alverca, onde o pai, Virgílio, era proprietário da loja Rei das Chaves, e a mãe, Anabela, trabalhava como contabilista. O seu irmão, Mauro, tinha mais 22 meses, e foi com ele que começou a dar os primeiros chutos na bola. Mais tarde, teve ainda uma meia-irmã, Cátia, filha do seu pai com a nova companheira.

Os progenitores separaram-se quando ele tinha pouco mais de 1 ano — algo que, segundo os amigos ouvidos pelo Expresso, fez com que Rúben desse ainda mais valor à estabilidade do seu casamento com Maria João Diogo, com quem trocou alianças há mais de uma década.

Aos 3 anos, entrou na Fundação CEBI, onde estudou até à quarta classe. Com 7, foi para o hóquei em patins do Alverca, vestindo o pesado equipamento de guarda-redes. Durou até ao dia em que se chateou com o treinador. “Teve um dia menos bom num jogo, terá dado um ‘franguito’ ou dois, e o treinador teve um comentário infeliz com ele: ‘Dormiste pouco, foste sair?’ O Rúben ficou muito sentido, era ainda um menino muito pequeno. Nunca mais lá apareceu. Fui eu que tive de ir buscar os patins dele ao pavilhão”, contou o pai ao Mais Futebol. Virgílio diz que Rúben sempre foi uma crian­ça adorável, mas que quando metia uma coisa na cabeça ninguém o conseguia demover.

Chegara a aguardada hora, aos 9 anos, de se apresentar nas escolinhas do Benfica, onde o irmão já jogava, nos infantis. Os técnicos observaram e disseram ao pai que Rúben era “um pequeno génio”. Integrou uma equipa onde conheceu alguns daqueles que viriam a ser os seus amigos de infância: Bruno Simão, João Vilela, João Pereira ou Pedro Russiano. “O Rúben sempre teve dois modos. Quando está a treinar, é sério e muito concentrado. Assim que termina o trabalho, mete o modo de brincadeira, é muito bem-disposto e está sempre na palhaçada, pica, goza, faz piadas, sempre com um humor certeiro”, diz Bruno Simão.

Amorim habituou-se a consumir livros de história, filosofia e, essencialmente, biografias de líderes icónicos: as prediletas são as de Obama e de Steve Jobs

Rúben costuma gabar-se de ter faltado apenas a um treino, para estudar para um exame de matemática. Chegava sempre na Ford Transit do seu pai, adornada com o autocolante da loja, regressando a casa depois das 22h. Aos 10, mudou-se para a Charneca da Caparica, na margem sul do Tejo, com a mãe. Estudou na Sobreda, no Laranjeiro e no Pragal. Inicialmente, sofreu um choque: o ambiente era muito mais perigoso e, após ter sido assaltado, começou a esconder nas meias o dinheiro que a mãe lhe dava. Passou também muitas tardes em casa de Bruno Simão, em São Domingos de Rana, dedicadas a videojogos como o “Elifoot” e o “Championship Manager”, um simulador de treino de equipas de futebol. A sua equipa estrangeira favorita era o AC Milan, e os seus jogadores de referência eram o argentino Fernando Redondo e, mais tarde, o francês Zinedine Zidane.

“Às vezes, eu ia jogar com uma malta mais velha, mas o Rúben preferia ficar em casa. Ele sempre gostou de estar sossegado no sofá a ver televisão”, conta Simão. Exceto no verão. As férias escolares eram passadas no parque de campismo da Orbitur, na Costa da Caparica, na companhia de Bruno Simão, João Vilela, Miguel Veloso, entre outros futuros futebolistas profissionais. “Era praia de manhã à noite, grandes jogos de futebol e, já na adolescência, começámos a ficar mais atrevidos com as raparigas e tivemos os nossos primeiros namoros”, lembra o ex-futebolista do Casa Pia e do Belenenses. Amorim era conhecido pelos amigos e pelos pais deles como o “Bebe-Água”. “A malta gostava toda de Coca-Cola e o Rúben só bebia água”, diz o seu amigo de infância. Um hábito que mantém: “Brincamos muito com ele porque nos jantares quase que temos de o obrigar a beber outra coisa”, reforça Daniel Oliveira.

Sofreu uma das maiores desfeitas da sua vida quando Vale e Azevedo extinguiu as equipas B da formação do Benfica, atirando Rúben e dezenas de outros miúdos para o vazio. “Chorámos muito”, diz Pedro Russiano, então seu colega no Benfica e atual treinador do Lusitano de Évora. “Não só destruiu as escolas do Benfica como a ligação entre nós. Cada um foi para o seu lado.”

Uns anos mais tarde, Russiano, com a camisola do Vitória Futebol Clube, de Setúbal, viu Rúben no Ginásio Clube de Corroios: “Não esperava encontrá-lo num clube tão modesto. Pensei que se tinha perdido um fora de série, porque o Rúben era quem pegava na bola quando estávamos a perder, era raçudo, não tinha medo de meter o pé mesmo contra avançados fisicamente poderosos”, diz Russiano. Nessa altura, já o médio tinha passado pelo CAC Pontinha e falhado o dia de treino no Sporting.

Corroios era mais perto de casa. Ali, sagrou-se campeão regional. O seu treinador, Ricardo Cravo, ficou deslumbrado com a sua maturidade. “Trocava muitas impressões comigo e era um líder. No campo e no balneário. O Rúben já falava muito bem, com muita clareza”, contou ao Mais Futebol. O técnico diz inclusivamente que, sem ele, não se teria tornado profissional; Cravo tinha um café na zona, e o pequeno Amorim disse-lhe que ele não merecia estar atrás de um balcão, pois tinha nascido para ser treinador, levando-o a tomar a decisão de se dedicar em absoluto ao futebol.

No último jogo pela equipa de Corroios, fraturou o braço, preferindo festejar a conquista do campeonato a ir para o hospital. Depois, recebeu uma nega de Nené, coordenador do futebol de formação do Benfica, para regressar à Luz. Até que o amigo Bruno Simão o convidou para ir treinar ao Belenenses: “Chegou de braço ao peito, cheio de medo de não ficar por causa dessa limitação. Mas o treinador colocou-o a defesa central, para o proteger de choques mais violentos, e no fim do treino veio agradecer-me por ter trazido um craque. O Rúben acabou por fazer os últimos anos de formação ali connosco”, diz Simão.

Era cada vez mais difícil estudar. Rúben era um aluno bem-comportado — ao contrário de Mauro, o seu irmão, que andava frequentemente à pancada — e teve muito boas notas até ao 7º ano, tornando-se depois um estudante mediano. Nunca reprovou. “Eu tinha um acordo com a minha mãe: seguia a escola até assinar contrato profissional, o que aconteceu aos 17 anos, no Belenenses. Estava no 12º ano e faltei aos exames nacionais para fazer a pré-época com a equipa sénior. Hoje arrependo-me muito. Podia ter entrado na faculdade com estatuto de alta competição. A minha mulher é engenheira eletrotécnica e manda-me isso à cara todos os dias”, disse Amorim, em 2017, em “Maluco Beleza”.

Um “Ai, Jesus!” com as lesões

Num Belenenses recheado de futebolistas experientes, Amorim foi lesto a impor-se. “Tinha uma personalidade forte, e ao fim de um mês já era um dos líderes do balneário”, diz Rui Casaca, à época diretor desportivo no Restelo e responsável pelo primeiro contrato profissional do atual treinador do Sporting. “Houve umas guerras porque queríamos subi-lo aos seniores, juntamente com o Rolando e o Gonçalo Brandão, e o empresário preferia que eles ficassem livres. Mas ele entrou determinado no escritório e disse que queria assinar connosco.”

Em 2008, foi contratado pelo Benfica por um milhão de euros, entrando no plantel às ordens do espanhol Quique Flores. “Assinei pelo Benfica com o coração”, disse ao Expresso em 2017. “Iria ganhar mais num clube alemão que me queria do que alguma vez ganhei no Benfica [...], que nem me dava metade do que eles me davam.” Fez rapidamente amizade com o defesa brasileiro David Luiz: “Andavam sempre juntos, pareciam o ‘Roque e a amiga’. Eram muito bem-dispostos. Nos estágios, quando a minha filha me visitava, pedia-me sempre para estar com o Rúben e com o David”, lembra Nuno Gomes.

Na temporada seguinte, os “encarnados” tomaram uma das decisões mais importantes para a vida de Amorim: chamaram Luís Filipe do empréstimo ao Vitória de Guimarães. O lateral direito é casado com uma das irmãs de Maria João Diogo. “A Maria João passou a acompanhar a minha mulher aos jogos, e foi aí, no Estádio da Luz, que ela conheceu o Rúben”, afirma Luís Filipe, desmentindo ter sido o “casamenteiro”. “Foi através de mim, indiretamente, mas eu não fiz nada para os juntar.”

Rúben e Maria João casaram a 23 de junho de 2013, na igreja do Palácio de São Marcos, em Coimbra. Têm dois filhos. Os amigos dizem que o treinador encontrou nela a sua cara-metade e que se complementam bastante um ao outro. Segundo Amorim, as poucas discussões que têm devem-se à sua desorganização e à sua tendência para procrastinar limpezas e arrumações.

Foram educados em contextos bastante distintos: ela nasceu e cresceu em Coimbra, no seio de uma família burguesa, e estudou engenharia, enquanto ele foi educado em ambientes suburbanos, no meio das classes trabalhadoras. Quando casaram, fizeram um vídeo em que Rúben se fazia passar por um conimbricense abastado, enquanto Maria João se transformava no estereótipo de uma rapariga dos arrabaldes de Lisboa. Amorim chegou a revelar divergências sobre a educação dos filhos: ela preferia as escolas públicas, pois tinha tido boas experiências em Coimbra, enquanto ele associava-as a andar com o dinheiro refundido nas peúgas. Além da esposa de Luís Filipe, Maria João tem outra irmã, Daniela, mais velha, casada com Antero Henrique, antigo dirigente do FC Porto e do Paris Saint-Germain e um dos homens mais poderosos do futebol nacional.

Quique acabou substituído por Jorge Jesus (J.J.), treinador que já o tinha orientado no Belenenses. Rúben nunca escondeu que foi o técnico que mais o influenciou — trabalharam juntos sete anos —, mas a sua relação com J.J. ficou marcada por altos e baixos. “Enquanto jogador tive muitos problemas com o Jesus. Mas tive como outros tiveram, porque o Jesus é um treinador que cansa. É muita intensidade e muita informação tática, todos os dias a carregar em cima do jogador, é muito perfeccionista. Trabalhei muitos anos com ele e é óbvio que o meu nível de exigência é parecido com o dele”, dizia Amorim, ao Expresso, há sete anos. “Mas não serei um treinador como Jorge Jesus, porque temos feitios diferentes.”

Épicas eram, segundo os colegas, as imitações satíricas das palestras de J.J. feitas por Amorim, que juntavam no balneário todos os atletas e equipa técnica. Ao que o Expresso apurou, Rúben ficava incomodado com a rudeza com que o técnico tratava alguns jogadores e também com o seu ego sobredimensionado, característica com que embirra visceralmente. Mas sempre foi um admirador do seu conhecimento futebolístico. A maior fricção deveu-se à insistência do atual treinador do Al-Hilal em utilizar Amorim em posições que não a dele: “O Jesus metia-o a jogar a lateral direito e ele não gostava”, afirma Luís Filipe.

Na seleção, o treinador Paulo Bento relembra o espírito abnegado do centrocampista: “Numa partida de preparação para o Mundial 2014, contra a Irlanda, havia uma lacuna no lado direito da defesa e, mesmo sabendo que o Rúben não gostava, comuniquei-lhe que tinha de o usar naquela posição”, diz o antigo selecionador. “Tivemos uma conversa honesta, e do outro lado veio a aceitação, agregada a uma disponibilidade extraordinária para entender o que era necessário para a equipa. Como era norma dele, pôs os interesses coletivos à frente dos individuais.” Contudo, Amorim acredita que a polivalência que lhe era característica prejudicou a sua carreira. “Por estar sempre a trocar de posição, tornei-me pouco ousado, a jogar sempre pela certa, com receio de cometer erros. E arrependo-me. Na minha última época no Benfica, exigi treinar e jogar somente na minha posição [médio centro]”, confessou, na entrevista a Rui Unas.

As confusões com Jesus levaram ao seu empréstimo ao Sporting de Braga, em janeiro de 2012. Na época e meia em que esteve no Minho, Amorim regressou às boas exibições. Contudo, ainda mais importante, foi a amizade improvável que fez com um colega de equipa, ex-jogador do Sporting: Hugo Viana. “A imagem que eu tinha do Hugo Viana era horrível […], não podia com ele. Por causa da postura dele em campo, a atitude, que vim depois a perceber não ter nada a ver com a pessoa que ele é”, disse em “Maluco Beleza”. Maria João e a esposa de Viana, Raquel Gomes, também se começaram a dar bem (são hoje sócias numa empresa de design de interiores), e os dois casais são, desde então, bastante cúmplices. Mais tarde, quando Amorim estava a jogar no Catar e Viana nos Emirados Árabes Unidos (EUA), encontravam-se regularmente no Dubai. Num período de grande desmotivação de Amorim — assombrado pelas lesões e irritado com o futebol em Doha —, Viana foi o seu maior apoio. Algo que ele jamais esqueceu.

Eram épicas as imitações satíricas das palestras de J.J. feitas por Amorim, que juntavam no balneário todos os atletas e a equipa técnica do Benfica

“Eles coincidiam no conhecimento sobre o jogo, sobre o treino e a capacidade de liderança”, diz José Peseiro, que os treinou no Braga naquela época. “E também a capacidade de observar, avaliar, emitir opinião, que não é normal encontrares a duplicar num plantel.”

Feitas as pazes com Jesus, Amorim brilhou na época de regresso ao Benfica. Mas a 24 de agosto de 2014, num Boavista-Benfica, da 2ª jornada do campeonato, sofreu uma rotura total do ligamento cruzado do seu joelho direito — a lesão aconteceu num relvado sintético e, desde então, ganhou aversão ao piso artificial. Indevidamente operado a uma pubalgia no início da carreira, sempre foi atreito a lesões. Daquela vez, ficou altamente frustrado. Chegou a insultar os fisioterapeutas e a atirar-lhes chuteiras. “Um jogador lesionado fica com stresse, mau humor e, ao contrário do que se pensa, passa ainda mais tempo no clube para recuperar”, afirmou na entrevista a Unas.

Essa lesão ditou que terminasse a carreira muito cedo, aos 32 anos. Mas levou-o, por outro lado, a preparar-se mais cedo para a etapa seguinte.

“E se corre bem?”

Depois do Casa Pia, Amorim tinha tudo encaminhado para pegar nos sub-23 do Benfica. Convidado pelo presidente Luís Filipe Vieira, reuniu-se, em maio de 2019, com Pedro Mil-Homens e Pedro Marques, respetivamente diretor do centro de estágio do Seixal e coordenador de formação. Mas a conversa não teve o desfecho previsto. O treinador rejeitou trabalhar com a filosofia das águias, com os jogadores em constante mudança entre as equipas B, sub-19 e sub-23. “Eu não sou capaz de trabalhar assim, não quero ser o treinador de sub-23 que tem de dar jogadores”, terá respondido, segundo a versão de Mil-Homens. Anos mais tarde, Vieira lamentou que Amorim tenha abandonado a academia sem lhe telefonar, pois ele reverteria a decisão.

Tarde demais. Após uma fugaz passagem pelos sub-23 do Estoril, foi contratado para dirigir a equipa B do Sporting de Braga. “Foi uma possibilidade mais trabalhada pelo [presidente] António Salvador. Perguntou-me o que eu achava, e eu respondi-lhe que tinha características de líder e que se ia impor nessa vertente”, diz Rui Casaca, então diretor desportivo dos minhotos. “Não sei quem terá dado a dica ao Salvador. Fiquei na dúvida se foi por intermédio do Antero Henrique ou do Pedro Alves, que tinha sido nosso olheiro e era, naquela altura, diretor desportivo do Estoril.”

Casaca, que já tinha apresentado, no Belenenses, o primeiro contrato profissional a Amorim, seria também aquele que iria oferecer-lhe o primeiro emprego como treinador principal; nos derradeiros dias de 2019, Ricardo Sá Pinto foi despedido e o técnico da equipa B promovido à primeira equipa. “Fez uma rutura com o trabalho do Sá Pinto e implementou o sistema dele. Observava muito o Pep Guardiola e a maneira como ele trabalhava. As suas ideias foram imediatamente aceites, e a equipa tinha jogadores que se moldavam bem à tática dele”, diz Casaca.

Estreou-se logo com uma goleada por 7-1 contra a B-SAD. Seguiram-se dois meses delirantes: conquistou a Taça da Liga e derrotou FC Porto, Sporting e Benfica para o campeonato. Os bracarenses ainda estavam a celebrar quando o Sporting lhes tocou à porta, com 10 milhões de euros para pagar a cláusula de rescisão e levar o treinador para Alvalade. “Ficámos muito surpreendidos e julgámos que não ia para a frente, eram valores elevadíssimos”, diz Casaca. “Mas o Sporting atacou através do treinador, que se sentiu motivado a ir para lá. Foi uma jogada do Hugo Viana, que conhecia bem o Rúben e convenceu o Frederico Varandas.”

Viana já tinha pensado recrutá-lo no início da época para a equipa B. O diretor desportivo costuma lamentar-se por não o ter feito, pois teria poupado 14 milhões (o valor da cláusula agravou-se devido a juros de mora). Não o fez, segundo soube o Expresso, por estar há pouco tempo no Sporting e por Amorim ser seu amigo, o que poderia ter levantado suspeitas de favorecimento. Levantaram-se ainda dúvidas sobre o papel de Antero Henrique, cunhado de Rúben, na transferência. “O Antero Henrique reúne-se com toda a gente, é um fantasma, e nunca se sabe bem o que os fantasmas fazem”, diz Casaca.

Como o Expresso noticiou, em fevereiro de 2021, uma fatura de 615 mil euros, com a descrição “prestação de serviços de consultoria e assessoria, tendo em conta a transferência do treinador de futebol Rúben Amorim, do SC Braga para o Sporting CP”, foi lançada pela empresa DHZ Consulting, controlada por Antero Henrique, tendo como destinatária a empresa Nomiblue Sports, de Raul Pais da Costa, antigo responsável jurídico do FC Porto e agente do treinador. A notícia deu azo a várias especulações, mas o Sporting sempre rejeitou qualquer ligação a Antero.

Amorim chegou ao Sporting num momento de grande convulsão. Na sua apresentação, quando os jornalistas o questionaram sobre o que podia correr mal, desarmou-os com o já célebre: “E se corre bem?” Contudo, dias depois, o clube enfrentou uma grande manifestação contra a direção. Finalmente, estalou a pandemia de covid-19. Amorim aproveitou o interregno para meter ordem na casa; segundo um jogador do Sporting, que falou em condição de anonimato, os jogadores questio­naram inicialmente o que é que ele, que era já o quarto treinador da temporada, ia trazer de novo se as armas eram as mesmas. “Ele fez-nos ver os jogadores jovens de forma diferente, o Matheus Nunes, o Gonçalo Inácio, o Bragança, conseguiu encaixar essas peças num sistema tático inovador e com margem de progressão. É obcecado pela transição defensiva e pelo espírito coletivo. Criou uma mudança de paradigma e ambiente que ainda hoje se respira na academia”, diz o referido atleta.

A meia época de estreia foi para aquecer. Na seguinte, Amorim levou os “leões” ao seu primeiro título em 19 anos. Visto como obreiro principal do triunfo, tornou-se o principal rosto do clube e o primeiro a dar a cara nas vitórias e nas derrotas, em conferências de imprensa marcadas pelo respeito e boa disposição: não fala de árbitros, é cordial com os adversários e tem resposta para tudo, passando apenas a informação necessária. Ao respeito dos adeptos, juntou a imprensa favorável.

As duas temporadas seguintes ficaram aquém das expectativas, principalmente a de 2022/23, finalizada no quarto posto. Amorim equacionou encerrar o seu ciclo, mas Viana e o presidente seguraram-no com determinação. Renovou contrato até 2026, vendo aumentado o seu salário anual de 2,5 milhões de euros.

Os jogadores habituaram-se ao seu registo honesto e frontal, bem como às suas linhas vermelhas. O treinador perde as estribeiras quando alguém se julga acima dos demais — quando não cumprimenta ao ser substituído, puxa os louvores para si ou amua por não jogar. Nos exigentes treinos defensivos, duas vezes por semana, ninguém se atreve a não correr para trás. “Chegou-se a um ponto em que os próprios jogadores se sentem mal consigo próprios se não cumprirem o que é exigido”, diz o jogador do Sporting ouvido pelo Expresso. Os habituais titulares assimilaram a rotação, aceitando serem remetidos para o banco numa determinada partida, para poderem estar no onze nas três seguintes.

As palestras são por vezes duras: a administrada ao intervalo do jogo da 2ª mão da meia-final da Taça de Portugal, contra o Benfica, foi descrita pelo jogador ouvido pelo Expresso como “nada agradável”.

Acorda todos os dias às 6h da manhã para treinar no ginásio e é quase sempre dos primeiros a chegar à academia. “Dedica muito do seu tempo a esmiuçar todas as variáveis possíveis do jogo. E, depois dos encontros, é capaz de ir na viagem de regresso a ver e a analisar a partida que terminou, porque precisa de saber porque ganhou, perdeu ou empatou”, diz Daniel Oliveira, que considera o seu amigo bastante pragmático, “perdendo pouco tempo no que não é essencial”.

Essencial, para ele, é o tempo na companhia da mulher e dos filhos. Não tem redes sociais. Quando pode, joga ténis, padel e golfe, recorrendo ao kickboxing para libertar energia acumulada. No verão, junta-se com os melhores amigos e respetivas famílias no Algarve, aproveitando também para assistir a algumas séries. A sua favorita é “Peaky Blinders”, cujas temporadas viu de enfiada.

Perde as estribeiras quando alguém se julga acima dos demais: quando não cumprimenta ao ser substituído, puxa os louvores para si ou amua por não jogar

Vê também vários jogos internacionais na televisão: liga italiana, de preferência. Contudo, o avançado Viktor Gyökeres passou-lhe despercebido até ao início de 2023, quando o amigo Tiago Ribeiro lhe falou nele. “Na altura, o ponta de lança não era a prioridade para a equipa, que precisava de se reforçar noutras posições”, diz o irmão de Nuno Gomes, que havia sinalizado o sueco há três anos, tendo-o recomendado inclusivamente a outras equipas nacionais. No final da época, o Sporting avançou finalmente por Gyökeres, contratado ao Coventry City, de Inglaterra, por 20 milhões de euros — uma verba recorde para os “leões”. Ele e o dinamarquês Mortan Hjulmand, do Lecce, foram reforços fundamentais para a evolução do 3x4x3 de Amorim, conferindo mais eficácia ao meio-campo e mais profundidade no ataque. A um jogo do fim da época — essa final da Taça frente ao FC Porto, no domingo —, o sueco tem 43 golos marcados.

O técnico tornou-se tão exímio na comunicação que consegue até virar as polémicas em seu favor. Em abril, quando faltavam ao Sporting apenas três vitórias para ser campeão, aproveitou uma folga para apanhar um voo privado para Londres, onde se viria a reunir com dirigentes do West Ham United, da Premier League. Rúben tinha dito que só pensaria no seu futuro depois de consumada a vitória no campeonato. Os jogadores poderiam ter-se revoltado, mas fizeram o oposto. “Nós sabíamos que o mister nos ia explicar tudo no balneário. Quando a imprensa atacou o Esgaio, o Paulinho ou o Adán, ele foi o primeiro a defendê-los. Se ele o faz por nós, porque é que não o faríamos por ele?”, diz o jogador do plantel do Sporting. O treinador acabaria por admitir o erro e por pedir desculpa, ousando mesmo brincar com o acontecimento durante os festejos do título: “Vamos despachar isto que tenho um avião para apanhar amanhã”, disse, antes de deixar nas entrelinhas a hipótese de lutar pelo bicampeonato do Sporting na próxima época. Em Inglaterra, o interesse de clubes como o Liverpool e o Manchester United despertou o interesse dos fãs e da imprensa: o seu nome chegou a ser o mais procurado do dia no Google UK.

A estrutura leonina está confiante de que Rúben Amorim dificilmente sairá do clube esta época. Segundo o que soube o Expresso, o dinheiro não está no topo das prioridades do treinador. O clube que o levar, dizem, será aquele que lhe demonstrar que o quer, como o Sporting fez, pagando a cláusula de rescisão. E, ao mesmo tempo, aquele que lhe garantir a autonomia para implementar o que tem em mente.

Até lá, é mais provável que permaneça ao lado do aeroporto, no Alvalade XXI, ou, quem sabe, rabiscando planos de treino numa mesa de um centro comercial.

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