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O improvável destino de Viktor: um passe para trás até à infância de Gyökeres, o homem golo da liga portuguesa

O improvável destino de Viktor: um passe para trás até à infância de Gyökeres, o homem golo da liga portuguesa
Ilustração de João Carlos Santos

Não cresceu numa academia de futebol. Não foi sempre o melhor. Chegou aos 25 anos sem nunca ter jogado numa primeira divisão, mas num ápice explodiu e transformou-se numa máquina de fazer golos dentro de uma máquina de futebol. Viagem de Estocolmo a Stugun, com quem o conheceu desde sempre

Diz-se dos predestinados que só têm de deixar a vida correr, porque chegar ao topo é uma questão de tempo. No futebol moderno, esse é um tempo que aparece cada vez mais cedo, e aos 5, aos 7, aos 10, ou no máximo aos 15 anos há projetos de jogador a serem caçados por scouts e agentes em quase todos os cantos da Europa, quando não estão já a jogar nos grandes clubes. Nada disso aconteceu com Viktor Gyökeres, um entre milhares de rapazes e raparigas que cresceram a jogar à bola num campo de gravilha num subúrbio a 20 minutos do centro de Estocolmo. E que teve de forjar o futuro à conta de querer jogar mais vezes do que os colegas, “rematar com mais força, correr mais depressa”.

Rapaz loiro e de pele clara como muitos outros, não especialmente alto para o padrão sueco, mas mais corpulento e obstinado do que a maioria, Viktor ia à escola cumprir os mínimos e ocupar os tempos livres dos treinos intensivos que impunha a si próprio. Muitos dos que o conhecem desde que pisou pela primeira vez essa gravilha do IFK Aspudden-Tellus, aos 6 anos, dizem que nunca soube parar. E que isso nem sempre foi bom, nem para ele nem para quem o rodeava.

Aspudden era então, no início dos anos 2000, um bairro de classe operária, também no padrão sueco, onde a maioria das famílias vivia confortavelmente e em comunidade, entretanto gentrificado e tornado residência de artistas e académicos. Fica a poucas estações de metro do centro da capital e tem como ex-líbris o Aspuddsparken, um enorme parque verde que inclui mesas para piqueniques, um parque infantil, uma piscina no verão, infraestrutura e atividades com animais (os porcos são hoje protagonistas), e que é encimado por uma escola primária, de onde a maioria dos miúdos sai no fim das aulas para descer para o campo, hoje já em relva sintética.

Uns quarteirões acima morava a família Gyökeres, pai Stefan, mãe Sofia, filha Clara, nascida em 94, filho Viktor, nascido em 98 (teriam mais um filho anos depois), todos a descer a ladeira da casa para a escola, da escola para o campo de treinos, numa vida feita em ambiente familiar e pouquíssimos quilómetros quadrados.

Se qualquer previsão é arriscada, imaginar um miúdo do Aspudden-Tellus, um clube que não tem fontes de rendimento além das quotas anuais dos associados e de um subsídio estatal e cujo terreno é propriedade da Câmara de Estocolmo, a chegar a titular da seleção da Suécia, estrela maior num país de tradição futebolística como Portugal e cobiçado pelos grandes clubes europeus, com os de Inglaterra à cabeça, é da ordem da loucura. Sobretudo para quem aqui vive e acompanha à distância, com orgulho não disfarçado, o sucesso do filho do bairro.

Viktor Gyökeres chegou a Portugal há pouco mais de um ano e teve impacto total. Aos 15 minutos do primeiro jogo oficial no Sporting já tinha marcado o tom da etapa portuguesa com dois golos, a que se seguiram outros 27 só no campeonato. Quase nenhuma equipa passou incólume ao furacão Gyökeres e, das três que subiram de divisão este ano, duas já sofreram dois golos cada do sueco — o Santa Clara ainda não, mas é também a única das três com que Gyökeres ainda não se cruzou. Assim, entre 20 primodivisonários, falta apenas marcar aos açoreanos, ao Estoril e ao Estrela da Amadora.

Decisivo na conquista do título pelo Sporting, fenómeno escasso em Alvalade, foi sem surpresa o melhor marcador do campeonato, com oito golos de avanço sobre o segundo (Simon Banza, do SC Braga). Para quem duvidava que fosse possível manter o nível, Viktor arrancou esta época a ser não o melhor marcador em Portugal mas no mundo, fechando setembro com 14 golos — 10 na Primeira Liga, 1 na Liga dos Campeões, mais 3 na seleção sueca. Chegado a outubro, abrandou, mas continua destacado como melhor marcador do campeonato. Agora a notícia é quando não marca.

DeFodi Images

Numa terça-feira de Liga dos Campeões, um grupo de oito sportinguistas reúne-se no Bryggeriet, um bar no centro de Estocolmo onde o à vontade com o proprietário é suficiente para pedir que aumente o som da transmissão do jogo dos leões (as outras televisões, distribuídas por duas salas, estão a passar o Arsenal, um dos clubes mais vezes apontado ao futuro de Gyökeres). Os oito vestem camisolas do Sporting, três deles com o mesmo nome e o número 9 nas costas.

Encontram-se todos os jogos, umas vezes no bar, outras nas respetivas casas, e estão a tentar oficializar um núcleo sportinguista na Suécia, para o qual já têm bandeira, desenhada pelo designer gráfico do grupo. Tentam também trazer aos jogos Christian Gyökeres, primo de Viktor, outro que descia ladeiras para treinar no campo do Aspudden-Tellus e que hoje acompanha o jogador para todo o lado, passando quase mais tempo na capital portuguesa do que na sueca. Ainda não conseguiram, mas acham que ele acabará por ir.

A cerveja no Bryggeriet custa mais de 5 euros, nada que atrapalhe estes radicados de longa data (exceção feita a um deles, ainda estudante), que se vão reforçando ao ritmo dos nervos de um jogo contra o PSV, que não corre bem à equipa, nem a Gyökeres, e que acaba com um empate. Os rostos contidos são prova de um tempo novo no Sporting, em que empatar na Liga dos Campeões não é satisfatório e em que o avançado não marcar golos em todos os jogos causa estranheza. Talvez esteja aí o sinal mais importante do fator Gyökeres.

Nos dias de Pringle

Quando o sueco nasceu, em junho de 1998, o Sporting não era campeão há 16 anos e preparava-se para mais uma época a terminar em 4º lugar, tal como a anterior, em que tinha tido quatro treinadores, um deles interino, e em que o melhor marcador não passara dos 10 golos. Em 1998/99, Iordanov, já experiente, capitão e símbolo do Sporting, foi o ‘matador’ de serviço — marcou 13 golos, menos de metade dos que Gyökeres fez na época de estreia. Havia então um avançado sueco a jogar no rival Benfica, chamado Martin Pringle, que começou como promessa e acabou como flop, com um golo marcado em 12 jogos. A esse Benfica chegaria dois anos depois um adolescente chamado Rúben Amorim, para jogar nos juvenis.

Passaram 26 anos, e o Sporting foi campeão apenas quatro vezes, sendo que para uma delas foi preciso esperar que Amorim fizesse toda uma carreira de jogador ligado ao Benfica e atravessasse a 2ª Circular como treinador, ainda sem Gyökeres. A última vez foi já com os dois juntos. Porém, mais do que troféus, o encontro improvável entre Rúben e Viktor ajudou a pôr o Sporting noutra dimensão, transformando-o por dentro e por fora e devolvendo aos sportinguistas uma autoestima que muitos já não sabiam que tinham.

No relvado, campeão em título, o Sporting tem hipóteses fundadas de vencer o bicampeonato, o que seria impensável até há pouquíssimo tempo. A equipa joga como não há memória por ali, e são os adversários a reconhecê-lo. Miguel Sousa Tavares, cronista do Expresso e conhecido adepto do FC Porto, escreveu por estes dias na coluna que assina no jornal “Record”: “Sem derrotismo, apenas rea­lismo, dar-me-ei por satisfeito se o FC Porto terminar o campeonato no segundo lugar, frente a um Sporting de outro planeta.”

Viktor é a representação perfeita dessa imagem que parece vinda do além. Se é certo que houve outros avançados a marcar a história do clube e do futebol português, é raro encontrar quem ofereça uma ideia de quase invencibilidade, de atleta indestrutível, às vezes de forma literal: com a “força bruta” do corpo, Gyökeres parece capaz de receber um pontapé na frente, atacar o espaço vazio, ficar com a bola e, sozinho, inventar um golo, sem que ninguém consiga desarmá-lo ou, no mínimo, atirá-lo ao chão.

Fora de campo, nasceu uma espécie de ‘Viktormania’, materializada no gesto da máscara a tapar o nariz e a boca com que Gyökeres celebra cada golo e que é reproduzida por velhos e novos, portugueses e suecos, futebolistas e atletas de outras modalidades. Foi assim, de mãos no rosto, que o grupo de sportinguistas se fotografou no metro de Estocolmo a celebrar o título do verão passado.

A máscara a tapar o nariz e a boca com que celebra cada golo é reproduzida por novos e velhos, de Lisboa a Estocolmo, numa espécie de ‘Viktormania’

E é assim que os miúdos do Aspudden-Tellus preparam o aquecimento num dia de treinos em que discutem até onde pode chegar o sueco. “Se for para Inglaterra, vai ser melhor que o Haaland”, o norueguês que está no Manchester City, arrisca um dos rapazes de máscara. Sobre ela, Gyökeres sugeriu estar ligada à saga de Batman, quando no fim da época passada, depois de ter prometido revelar o segredo por trás do gesto, citou nas redes sociais uma frase de Bane, vilão do último filme da trilogia de Christopher Nolan. “Nobody cared until I put on the mask”; em português: “Ninguém quis saber até que eu pus a máscara.” Parece o resumo da vida de um “obcecado”, como muitos o descrevem, que traçou na cabeça um plano que mais ninguém viu.

David Hegethorn fazia trabalho administrativo e voluntário com a mulher, que consistia em preen­cher tabelas de Excel com nomes de crianças que jogavam à bola por diversão e que, naquela altura, tinham sido autorizadas a participar em duas séries: a que reunia os nascidos em 1997 e a dos de 1998, de dezenas de clubes de Estocolmo (só na capital da Suécia, há mais de 100 ligas amadoras). Havia, por isso, muitas crianças e muitos jogos para organizar. O que não havia era regras ou um treinador a decidir quem ia para onde.

“Era suposto ser justo” a mexer nas tabelas, lembra Hegethorn, mas “também era importante não cansar os miúdos”, que tinham à volta de 10 anos, “com demasiados jogos de seguida”. “Claro que o Viktor podia jogar os jogos todos, se deixássemos. E ele teve hipótese de jogar muito. Muito mesmo. Mas eu punha-o no banco às vezes, quando achava que ele precisava de descansar.” E ele? “Ficava zangado.”

É que Viktor nunca foi o pior, mas também “não era uma estrela”. “Havia outros igualmente bons”, como recorda Björn Thuresson, o presidente do Aspudden-Tellus, que o viu entrar por aquele campo durante uma década. Se Viktor não sobressaía imediatamente, ou pelo menos não sempre, num clube amador, onde era treinado pelo próprio pai e por outros pais voluntários, como seria se jogasse num clube ‘a sério’? Evoluiria mais depressa? Ou passaria despercebido e ficaria para sempre pelo caminho?

O último Gyökeres na neve

Mais de 500 quilómetros a norte de Estocolmo, o outono chegou em força a Stugun, onde as temperaturas já não passam dos 10 graus. Em breve virão os nevões, que hão de cobrir de branco as casas, a escola, o café. Parte da província de Jämtland, Stugun fica mesmo no centro da Suécia, um país com cerca de 450 mil quilómetros quadrados, mais de quatro vezes a área de Portugal, mas com os mesmos 10 milhões de habitantes. Jämtland é a segunda maior província sueca, ocupando mais de 8% do território, e é das menos populosas do país. Em Stugun, por exemplo, a população não chega a 600 pessoas. E durante muitos anos houve uma proporção considerável de ‘Gyökeres’ a contribuir para essa estatística.

Não é difícil reparar no apelido, que os suecos não usam, já que é de origem húngara. Máté Vargha, jovem da Hungria que veio estudar para a Suécia e que jamais tinha ouvido falar em Viktor, explica que o nome significa qualquer coisa como “enraizar”. O que dá um mote apropriado para a história dos Gyökeres na Suécia. Em 1956, decorrida já uma década de ocupação soviética da Hungria, uma manifestação estudantil acabou em revolta popular contra o regime comunista, que por pouco não foi derrubado. Em menos de um mês, as tropas russas neutralizaram os revoltosos, numa repressão que acabou com uma contagem à volta dos 20 mil mortos. O sangue derramado na revolução húngara deixou, porém, uma semente, uma ideia que floresceria mais tarde, quando o bloco soviético foi enfim derrubado, em 1989, e paí­ses como a Hungria voltaram a ser repúblicas parlamentares independentes da URSS.

Foi um ano que ficou para a história da Europa, mas também para a história pessoal de vá­rias famílias, entre as quais a do jovem húngaro de apelido Gyökeres, que em 1956 fugiu para a Suécia. Primeiro em Estocolmo, depois na vila de Stugun, Gyökeres casou e teve quatro filhos, três dos quais jogadores de futebol. Todos semiamadores, mas também todos apaixonados pela bola. Stefan, que viria a ter um filho chamado Viktor, foi o que chegou mais longe. Estrela no Stuguns Bollklubb, o clube da terra, Stefan ascendeu ainda um pouco mais, até ao Östersund, clube ali ao lado, na única cidade da província onde cresceram os primeiros Gyökeres suecos. Por aqui, todos se lembram deles. No jornal local, o “Östersund-Posten”, há artigos sobre a história de Stefan e o peso que tinha na equipa nos anos de 1980 e 1990.

Quando o Expresso bate à porta da redação, encontra uma maioria de jovens que, embora sem idade para terem visto Stefan jogar, lhe conhecem o percurso. No arquivo do jornal há fotografias guardadas do pai de Viktor em ação. Há também uma referência curiosa mais recente a um certo jogo em 2015, a contar para a segunda divisão sueca. O Östersund defrontava, em agosto, no início do campeonato, o Brommapojkarna (abreviado para BP na Suécia), que tinha nas suas fileiras um rapaz de 17 anos, saído do Aspudden-Tellus pouco antes, que ali tinha oportunidade de se estrear num jogo oficial de seniores. Era Viktor Gyökeres, que entrou aos 85 minutos e assim começou oficialmente a carreira de futebolista no estádio onde o pai, um dia, tinha passado os melhores anos de chuteiras nos pés.

Gyökeres estreou-se como sénior no estádio onde o pai, Stefan, passou os melhores anos de chuteiras nos pés, em Östersund, a 500 quilómetros da capital

Depois de as pendurar, nos anos 90, Stefan foi para Estocolmo, onde Viktor nasceu e cresceu, e o número de Gyökeres em Stugun foi encolhendo, com a saída de outros filhos e netos. Há um ano e meio morreu a matriarca da família e avó de Viktor, Vivianne, que ainda lá vivia. À distância de tantos anos e episódios, Tommy Gyökeres quase se espanta com a própria conclusão: “Sim, parece que sou o último Gyökeres em Stugun.”

Tommy é um dos irmãos de Stefan e tio de Viktor e conduz um táxi na pequena localidade. Há uma boa maneira sueca de evitar perguntas indiscretas, que é responder com silêncio, por isso Tommy não diz palavra sobre a relação da família. Conta apenas que não vê Viktor com muita frequência, embora se lembre das visitas que ele, o pai, a mãe e a irmã faziam a Stugun. “Ele nunca estava longe de uma bola”, recorda Tommy, e já “dizia que ia ser avançado”, striker, frase comum em crianças apaixonadas por futebol, a que Tommy não deu especial importância. Hoje, surpreendido, acompanha à distância a carreira e os resultados do sobrinho. “Não é a primeira coisa que faço, mas é engraçado ver o meu nome por aí”, ri-se.

Pés na terra

O passado em Stugun mostra que, não sendo um predestinado, Viktor tinha os genes do futebol no corpo. Mas não deve ser confundido com um empurrão familiar para a profissionalização dessa bio­logia. Em Estocolmo, enquanto assiste a um treino dos miúdos do Aspudden-Tellus, Björn Thuresson, que partilhou a direção do clube com o pai de Gyökeres, garante que mesmo tendo sido jogador, Stefan nunca forçou o filho a fazer carreira. “Na Suécia, isso não funciona assim. É suposto os pais apoiarem as decisões dos filhos, mas não ‘empurrá-los’.”

Thuresson exemplifica com uma situação hipotética, que na verdade em Portugal se tornou recorrente. “Se um pai viesse aqui assistir aos treinos do filho e começasse a gritar ou a dar indicações para o relvado, seria imediatamente expulso.” Outro exemplo: nas provas em que as crianças do Aspudden jogam hoje, não há pontos, tabelas classificativas, estatísticas ou campeões. Há apenas jogos. “Queremos que isto seja só sobre miúdos a divertirem-se e a crescerem a jogar à bola.”

Hanna Bergander, diretora do clube, também voluntária, veste uma camisola de Gyökeres no Sporting sempre que recebe um português (já passaram por aqui alguns, como a Rádio Renascença, que fez um podcast em três episódios sobre o passado de Viktor). Concorda com Björn e lembra um caso semelhante agora, em que uma das crianças foi sondada para ir para uma das melhores academias da Suécia e recusou. “Ia treinar muitas vezes, fazer viagens de uma hora de metro para lá e para cá, e preferiu ficar aqui a praticar com os amigos e a desafiar-se a jogar com os mais velhos.”

Nem sempre os mais velhos dão por isso. A certa altura, Elber Tavares, veterano do Aspudden com origens em Cabo Verde, aproveita a presença de um português para regressar ao idioma-mãe e contar que nunca reparou em Viktor. Naquela altura, “eu não ligava aos meninos”, concede Elber, sete anos mais velho. E ali nunca ninguém tinha visto nascer uma estrela, ninguém sabia com o que é que se parecia.

Foi por isso que no momento em que Viktor foi finalmente descoberto pelo BP, a decisão de sair para um clube profissional não foi de ‘sim’ ou ‘sim’. “Sei que ele e o pai discutiram muito isso e decidiram que o melhor era ele ficar cá mais algum tempo”, conta Thuresson. “O Viktor gostava de ter ido embora mais cedo.” Nessa altura, por volta dos 14 anos, já “sabia que era o melhor aqui”. Mas “ele e o pai falaram muito sobre essa ideia de controlar o desenvolvimento” enquanto jogador, sem ninguém “interferir”.

Assim foi. Em 2013, Viktor Gyökeres fez uma época entre cá e lá, jogava e treinava no Aspudden, ia ao BP participar em jogos da Taça nas camadas jovens. Só no ano seguinte, já com 16 anos, deu definitivamente o salto, uma década depois dos primeiros pontapés na bola. Para Björn Thuresson, ao contrário do que possa parecer, essa demora no desenvolvimento foi fundamental. “Quando vais para uma academia de futebol, é-te dado um papel e tens de trabalhar nele” e, às vezes, ficar no banco e dar o lugar a outros. Por oposição, “o Viktor aqui pôde ser livre, correr o que quisesse, driblar o que quisesse, jogar as vezes que quisesse”, sem regras. É um exemplo, diz o presidente voluntário, de que “há outras formas de chegar ao topo”.

“Porquê ele?”

A David Eklund, Gyökeres já rendeu um emprego. Olheiro de futebol, Eklund recebe o Expresso nas instalações do BP, um clube que oscila entre a primeira e a segunda divisão de futebol e que há uma década caiu mesmo para a terceira. Nessa altura, Eklund já cá estava e trabalhava com o treinador de então, Magni Fannberg, que acabou despedido e que logo nesse verão foi contratado para um novo clube, na Noruega. Fannberg ligou a Eklund a convidá-lo para irem juntos para o novo emprego. O motivo? “Foste tu que descobriste o Viktor.”

O olheiro não o fez sozinho, mas esteve praticamente três anos a seguir os passos do rapaz e a acumular dúvidas. Primeiro, Eklund (que aceitou o convite para a Noruega e entretanto já voltou ao BP) achou que o rapaz era “interessante”, embora ainda não o suficiente para o recomendar ao clube. Um ano depois pensou que tinha chegado a hora de desistir. “Só vi cinco jogos do Viktor nesse ano. Era um bocadinho lento, era gordinho.”

Por alguma razão difícil de explicar, voltou a olhar para ele no ano seguinte, quando o rapaz já sentia os efeitos da puberdade e crescia, crescia. “Passei a vê-lo todas as semanas”, conta Eklund. Da primeira vez que o cumprimentou com um aperto de mão espantou-se: “Tinha as mãos tão grandes e tão fortes que senti que o adolescente era eu.” E sentiu também que Viktor estava pronto para subir um patamar. Quando o comunicou ao BP, Eklund teve de responder pela primeira vez à pergunta que mais vezes lhe fizeram por ali. “Porquê ele?”

Se o percurso de 10 anos num clube de bairro é pouco comum, os anos seguintes da carreira de Gyökeres não foram diferentes. Desconfiança inicial no BP, superada por um período de sucesso quando o clube caiu para a terceira divisão, uma ida para Inglaterra, para jogar no Brighton, onde no campeonato atingiu a marca de 0 golos em 0 jogos, e uma sequência de empréstimos entre St. Pauli, clube da Alemanha, Swansea, do País de Gales, que disputa o campeonato inglês, e Coventry, outra vez de Inglaterra, onde chegou em 2021.

Nessa altura, Viktor tinha já passado por três países e em nenhum deles tinha sequer jogado nas primeiras divisões. Tinha 22 anos, o que é pouco em idade civil mas que no futebol costuma já servir de divisor de águas: de um lado os que chegam longe, do outro os que ficam pelo caminho, a meio da ponte, os apenas razoáveis.

Gyökeres parecia destinado a ficar por aí. Há, porém, uma característica de personalidade do sue­co que se ouve da boca de toda a gente que se cruzou com ele desde criança: a força mental e ultracompetitiva. “Tinha uma cabeça super, superfocada, não fazia nada a não ser futebol”, resume Björn Thuresson. “Uma vez vi-o ali no pelado a chorar depois de um jogo”, que “não era assim tão a sério”, confidencia Ivar Birgersson, outro veterano do Aspudden-Tellus. “Se sente que os colegas não conseguem, ele quer fazer tudo sozinho”, diz David Eklund. “Isso foi um problema quando chegou aqui [ao BP], os treinadores tiveram de trabalhar isso com ele.” Como diz o primeiro David desta história, Hegethorn, “o Viktor pode ser descrito como um tipo teimoso que nunca confia nos outros para fazer o trabalho duro por ele”.

Como é fácil de imaginar, essa não é exatamente a melhor forma de fazer amigos. Não que Viktor não os tivesse, mas “estava sempre a 100%”, mesmo nos treinos mais leves, o que “nem toda a gente apreciava”. “Digamos que não te tornas o preferido dessa forma”, brinca o presidente do Aspudden.

Esses traços inaugurais da persona futebolística de Viktor parecem intactos e, se continuam a não ser a melhor forma de conquistar colegas, talvez sirvam para agarrar treinadores. No ano passado, num jogo em que o Sporting foi dominado e perdeu em Itália, Gyökeres desentendeu-se com Ousmane Diomande, defesa central da equipa, o que obrigou à intervenção de alguns colegas para os separar. No final, Rúben Amorim disse que teria “feito pior” se estivesse em campo e que “a equipa precisa é de jogadores assim”, que se irritam com o falhanço individual e coletivo.

Amorim costuma chamar-lhe “ter fome”, e Gyökeres está sempre no grupo dos insaciáveis. Um “bocado temperamental”, “não muito falador”, às vezes até “um pouco distante”, mas um “tipo porreiro” e “confiante”. A que se deve juntar o adjetivo que aparece com mais frequência: “obcecado” pela bola. “Não tenho muito tempo para mais nada”, admitia o próprio Gyökeres em 2015, quando ainda usava fita no cabelo comprido, numa breve entrevista ao jornal do BP.

O olheiro que primeiro descobriu Viktor teve dúvidas: “Diziam que não valia a pena contratá-lo, porque não era bom tecnicamente”

É também por isso que da vida pessoal se sabe menos. Hobbies? “Não que eu tenha ouvido”, diz Thuresson. Festas? “Eu não era muito próximo dele, mas era muito amigo do primo, e não me lembro de festas”, responde Birgersson, depois de tentar puxar pela cabeça. Namoradas? “Teve uma, que conheceu na escola secundária e jogava aqui no clube”, recorda

Tal como no Aspudden, quando foi jogar para o BP, Gyökeres passou a estudar na escola ao lado, uma secundária que tem parceria com o clube. Foi lá que conheceu Amanda Nildén, que frequentava exatamente os mesmos espaços, entre o clube e a escola, e que é outro sinal de como o futebol parecia o princípio e o fim de tudo na vida do jogador.

Amanda saiu do BP um ano antes de Viktor, mas manteve-se em Estocolmo, a jogar na equipa feminina do AIK, um dos grandes clubes da capital, até que em 2018 foi com o então namorado para Inglaterra. Foram ambos jogar no Brighton, na primeira aventura de Gyökeres no estrangeiro. Hoje já não são namorados (há meses que é semipública uma relação do jogador com a portuguesa Inês Aguiar), e Amanda continua a jogar em Inglaterra, agora no Tottenham, e também na seleção feminina da Suécia.

Na seleção masculina, Gyökeres é indiscutível. Ainda não parece ter atingido na Suécia o estatuto de popularidade e confiança que tem em Portugal, mas tornou-se titular absoluto, depois de se ter destacado nos sub-19 e passado rapidamente pelos sub-20. É um percurso de vaivém, de altos e baixos permanentes, até à explosão final em Inglaterra e em Portugal.

“Quando o apresentei ao BP”, recorda agora o scout que insistiu no rapaz de há 10 anos, “o academy manager não o queria contratar, dizia que ele não era bom tecnicamente”. Agora, de volta à primeira divisão, o BP orgulha-se dos resultados, mas sobretudo dos atletas que ajuda a formar, tecnicamente evoluídos e longe da ideia antiga sobre futebol nórdico, em que a ‘bola queima’ e o que conta é o tamanho dos jogadores. Foi por isso que David Eklund teve de responder pela primeira vez ao “porquê ele?”.

“Primeiro, porque era fisicamente muito forte, sim, mas, em segundo, porque conseguia marcar golos de todo o lado”, conta Eklund. “Era tão bom nisso que eu achei que o resto não importava.” Apesar da surpresa pelo nível que atingiu, do Aspudden ao BP, todos reconhecem que havia em Viktor uma forma especial de jogar, que faltava limar e tornar menos individualista. “Ele amadureceu muito no Brighton, e também na Alemanha, porque estava ali mais ou menos sozinho”, acredita Björn Thuresson. Se assim for, não espanta que tenha sido na etapa seguinte, o Coventry, que Gyökeres criou essa imagem de atleta indestrutível. Fez 91 jogos e 38 golos, e provavelmente só o facto de o clube ter falhado por pouco a subida à Premier League permitiu ao Sporting ir buscá-lo.

E o futuro?

Há uns meses, naquele seu jeito de poucas palavras, pôs em alvoroço o sportinguismo, e não só, quando admitiu que qualquer um gosta de jogar ao mais alto nível, o que significa pensar no pós-Sporting. “A cláusula de rescisão [de 100 milhões de euros] é provavelmente um bocadinho alta, já que nada aconteceu” no mercado de transferências do verão, disse Gyökeres. No entanto, “estou muito feliz no Sporting, ficar não é um problema”. “No stress”, acrescentou, em inglês.

Não há dia em que a eventual saída não seja tema em Portugal nem semana em que não apareça na imprensa inglesa. “Viktor Gyökeres deve ser considerado o próximo atacante de elite da Europa”, escreveu o “Guardian” no mês passado. “Chelsea lidera a corrida por Gyökeres”, avançou a BBC também em setembro. “A versatilidade do atacante sueco do Sporting pode fazer com que a sua cláusula de rescisão, de 85 milhões de libras [100 milhões de euros], pareça uma pechincha”, acrescentou o jornal inglês.

Não se sabe se Gyökeres fica em Portugal para lá do inverno ou sequer se esta é a última época em Alvalade. Sabe-se, porém, que foi o jogador mais caro que o Sporting alguma vez contratou e dificilmente não será o mais caro alguma vez vendido. No caso de BP e Aspudden, há direito a uma compensação em percentagem da futura venda, o chamado mecanismo de solidariedade, pela formação do atleta. Tanto um como o outro clube rea­gem com um sorriso a esse futuro, sem demasiado entusiasmo.

“É superestranho esse tema”, comenta o presidente do Aspudden. Claro que vai servir para melhorar infraestruturas, como aliás aconteceu com o dinheiro da venda do Coventry para o Sporting, (“demorou, mas recebemos”). O atleta rendeu então 20 milhões de euros no total. Um ano e meio depois, o Transfermarkt, especializado em valores de mercado e transferências, avalia-o em 70 milhões, o valor mais alto de sempre em Portugal, a par do que João Félix alcançou em 2019 — e que valeu então uma venda estratosférica ao Benfica, a rondar os 120 milhões de euros.

Mais milhão, menos milhão, o Aspudden garante que vai continuar a ser um clube de “miúdos a divertirem-se a jogar à bola”. “E vamos ficar felizes pelo Viktor!”, solta Hanna Bergander.

Já Eklund, o homem que ficou com a ‘medalha’ de ter descoberto Gyökeres, limita-se a encolher os ombros.

— Nunca mais vi um jogo do Viktor.

— Porquê?

— Agora já não o posso comprar.

Nota: artigo corrigido onde se dizia que a Gyökeres só faltava marcar golos ao Santa Clara (que ainda não havia defrontado). Na verdade, o sueco também ainda não havia marcado a Estoril e Estrela da Amadora (a este último, marcaria 4 golos duas semanas depois deste artigo). Aos leitores, as nossas desculpas.

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