O surf está interdito, mas houve quem fosse surfar no Guincho e a Polícia Marítima interveio. No dia seguinte, o filme repetiu-se

Editor
O hábito, se estes tempos fossem os do costume, seria acordar, pegar no telemóvel e ver como se aperalta o mar. Todos os dias de Filipe Jervis se espreguiçam mais ou menos assim, pois ele é surfista, compete há anos no circuito nacional, já o fez lá fora, tem um projeto para ensinar miúdos a surfar e a vida dele é isto. Mas, como se impõe, está há quase um mês em casa - e, ao despertar na quarta-feira, consultou o site Beachcam e “não estava a acreditar”.
Na praia do Guincho, bem perto de onde Filipe pratica a reclusão caseira, em Cascais, estavam uns 20 ou 30 surfistas no mar que “devia estar vazio”, conta à Tribuna Expresso. Ficou parvo “com o desrespeito enorme para com toda a gente” e incomodado com as pessoas “que perdem noção do quão grave isto é” devido ao atual estado das coisas em Portugal.
Há 13.956 pessoas infetadas com covid-19, já morreram 409 e foi para evitar estes e piores números que, a 18 de março, o Governo decretou o estado de emergência nacional, entretanto prolongado até 17 de abril.
Ficaram permitidas apenas “deslocações de curta duração” nas “imediações da residência” e quem não respeitasse as limitações poderia incorrer em crime de desobediência civil. Foi por isso que, na quarta-feira, uma viatura da Polícia Marítima de Cascais foi ao Guincho, aproximou-se "da linha de água" e a alertou "os surfistas para o dever geral de recolhimento" com o sistema sonoro, confirmou a Autoridade Marítima Nacional à Tribuna Expresso. Todos os surfistas que estavam na água cumpriram, "sem exceções".
A ocorrência foi registada e nada mais. "Temos estado a privilegiar as ações de sensibilização, aconselhando os surfistas a sair da água e a recolher a casa. De qualquer maneira, haverá pronta autuação em caso de desobediência, situação que até à presente data nunca aconteceu", explicou a Autoridade Marítima, por e-mail, assegurando que tem sido feito "um esforço adicional de fiscalização nas praias dos concelhos de Cascais, Mafra, Sintra e Torres Vedras".
Mas, esta quinta-feira, eis outros 10 ou 15 sentados nas pranchas a flutuarem, de novo, no mar da praia do Guincho, relatam à Tribuna Expresso. No Algarve, contaram a João Aranha, presidente da Federação Portuguesa de Surf (FPS), houve "imensos estrangeiros a borrifarem-se" para as regras do estado de emergência.
Não será por falta de aviso e desincentivo por quem de direito. A Associação Nacional de Surfistas alertou, a 19 de março, que “o surf está interdito e sujeito a penalizações pelas forças de segurança”. No mesmo dia, a Federação Portuguesa de Surf reforçava a interdição, acrescentando que “recomenda a todos os seus associados e surfistas em geral que respeitem escrupulosamente a quarentena e as medidas”.
Alguns até poderiam ter permissão para ali estarem à vontade, surfando as ondas que quisessem. Aquando da elaboração do decreto-lei do estado de emergência, ficou estipulado um regime de exceção para os atletas integrados no Programa Olímpico ou com estatuto de Alto Rendimento. Essa isenção não se alterou com o adiamento dos Jogos de Tóquio para 2021, garantiu-nos o Comité Olímpico de Portugal.
Daí Frederico Morais revelar, ainda em março, como eram os seus dias: procurava praias mais isoladas, saia de casa de madrugada e ia surfar sozinho. Kikas é o único surfista que integra o Programa Olímpico e um dos 30 que gozam do estatuto de Alto Rendimento.
Desde 24 de março, quando se confirmou a passagem dos Jogos para 2021, que deixou de o fazer. Vasco Ribeiro também não o tem feito, como muitos e quase todos os que fazem parte do lote definido pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude, confirmam várias bocas.
Os e as surfistas que competem, dependem e vivem das ondas têm feito a sua parte e ficado em casa. Provavelmente a "roerem-se", diz Filipe Jervis, pois agora “as previsões de ondas são boas". A redundância é óbvia, ninguém gosta de estar fechado em casa, “não é fácil, obviamente, mas é o que temos de fazer”, apela o surfista de 29 anos.
Sem mar para ele ou para levar os miúdos da Jervis Surf Experience, defende que “todas as pessoas têm que pôr a mão na consciência” e não devem “abandonar a quarentena, de maneira nenhuma”, mensagem que o presidente da federação replica: “A nossa posição é que os surfistas fiquem e treinem em casa”.
Depois, há quem possa remar, apanhar ondas e deslizar na exceção, com a qual João Aranha discorda.
É uma medida “muito engraçada”, mas, “além de não ser justa”, argumenta que “em termos de saúde pública não é a coisa mais inteligente”. João Aranha conta que, de início, “o espírito da lei” seria para os atletas inseridos no Programa Olímpico e “o legislador resolveu incluir o Alto Rendimento”. Na FPS, significou que 30 surfistas foram abrangidos, dos quais “sensivelmente 80% são menores e jovens das seleções juniores”.
A exceção “não faz qualquer sentido” para o líder da federação, criticando-a por carecer de mais limites. “Se estiver bom em Supertubos e eu moro em Carcavelos, como vou fazer? Vou fazer os 100 quilómetros e contrariar tudo o que são normas de circulação? E a exceção falava em treinador e acompanhante”, explica. Ou seja, esta exceção, na prática, “poderia afetar 90 pessoas” só no universo do surf.
A lei é a lei e a federação cumpriu-a, enviando uma listagem dos atletas com estatuto de Alto Rendimento para todas as capitanias do país. Assim que os Jogos Olímpicos foram adiados para o próximo ano, João Aranha “interpelou” o COP, o IPDJ e João Paulo Rebelo, secretário de Estado do Desporto e da Juventude, enviando um comunicado. Ainda não obteve resposta.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt