Surf

Morreu o ‘Daily Wavester’, homem que surfou, todos os dias, durante mais de 40 anos

Morreu o ‘Daily Wavester’, homem que surfou, todos os dias, durante mais de 40 anos

O seu dogma era surfar, pelo menos, três ondas por dia até à areia e cumpriu a missão em 14,641 dias consecutivos, de 1975 a 2015. Dale Webster, norte-americano, bateu o anterior recorde do Guinness por quase 10 mil dias. Continuou sempre a ir ao mar, até no dia em que o cancro lhe levou a mulher ou no meio de tempestades tão fortes que ficava com nódoas negras na cara de apanhar chuva

Reza a história, e muito tempo houve para Dale Webster a desmentir, que visitou uma qualquer biblioteca em Bondega Bay, terra pacata no norte da Califórnia, em 1975, no encalço de livros para o ensinarem acerca dos efeitos da Lua nos mares, nas marés e nas ondas. Quis instruir-se sobre o que influía no estado líquido e salgado onde lhe aprazia mais estar. Conta-se que saiu de lá convencido de que um ciclo lunar durava quatro décadas, encontrara a validade que procurava, como tal muito lhe faltava surfar. 

A Lua engorda, mostra a sua redonda garimpa, depois mingua e repete o processo a cada 30 dias, o monumental erro de cálculo de Webster significou que o norte-americano surfou 14,641 dias consecutivos de modo a satisfazer o desígnio que o ludibriou por engano. Ou não. Também se conta que o norte-americano, decidido o intento, pretendia ‘apenas’ deslizar em ondas com os pés assentes na prancha até fevereiro de 2004, quando os dias da semana encaixariam tal e qual no calendário como no mês de arranque do seu périplo.

Coincidência da vida, seria mesmo em 2015, a 5 de outubro, culpa de uma cirurgia para retirar uma pedra de um rim, que conheceu um dia sem pegar na prancha e apanhar ondas até à costa, no plural - pelo menos três por sessão tinham que ser, dogma seu. “Até arrastar o fin na areia”, explicou à “Surfer”, publicação responsável, sem saber, pelo juramento não terminar mais cedo. 

Em maio, diagnosticada a gravidade dos cálculos renais, os médicos gastavam-lhe o nome, insistiam que o ‘Everyday Dale’, uma das suas alcunhas, tinha de parar, submeter-se à faca, mas nada feito. “Disse-lhes que não o podia fazer pelo que tinha sido escrito na revista. Na anterior edição de agosto, disse que iria surfar até 3 de setembro de 2015. Não queria desapontar os leitores”, justificou o aí sexagenário, por telefone, já longo ia o primeiro dia em 40 anos em que não sentira a água salgada na cara.

Era a véspera da cirurgia, Dale Webster reunira amigos em casa para “uma festa final”, semelhante à que o tivera como anfitrião para celebrar “os 28 anos e meio” a surfar. Reuniu quem lhe era mais querido, os convivas levaram t-shirts com a sua cara estampada, “sem eles este dia teria sido mais difícil”, reconheceu simplesmente o norte-americano, sem profundos devaneios, vagarosas explicações ou longos processos de interiorização de fosse lá o que movia. O ‘Daily Wavester’, outro dos seus cognomes, era terreno no dito apesar de aquático nos feitos.

Carlo Allegri

Nasceu em 1948 e conheceu o surf com 13 anos, em San Diego. Com mais uma década vivida, já assente em Bondega Bay, pouco mais de 100 quilómetros a norte de San Francisco, experienciou no mar a “Monster”, uma ondulação proveniente da Nova Zelândia tão épica que os locais a batizaram assim, de 1975. Durante sete dias, Webster surfou ondas a roçarem os três metros de altura, deleitado com as vagas que “melhoravam” a cada sol-posto.

Levado pelo ímpeto, surfava já há 85 dias seguidos quando “um amigo” o desafiou a ir aos 100. “Quando lá cheguei, a história apareceu no jornal local e a publicidade deu-me um pequeno empurrão para tentar um ano. E por aí adiante”, recordou à “Surfer”, em 2015, no 5 de outubro que interrompeu a senda iniciada no 2 de setembro de 1975. Foram quarenta anos, um mês e três dias de um ritual a alastrar um lastro de consequências pela sua vida.

Com dois terços da aventura cumprida, Dale relatou umas quantas ao “The New York Times”. Para nunca se afastar do oceano, jamais se dedicava a empregos que o exigissem. Trabalhava então, em 2000, como vigilante de uma escola local. Para afugentar suspeições, ao longo da primeira década do hábito pedia a pessoas na praia, ao sair da água, que rubricassem uma espécie de diário de bordo que tinha sempre consigo para garantir testemunhas do seu surf. Alguns ocasionais desconfiados recusavam, aí pedia à sua mulher, Kaye, para assinar. 

Comprava um fato de neoprene sempre da O’Neill, no mesmo comerciante, zeloso de fazer render os 365 dias de garantia: a cada ano, antes de ela se esgotar, regressava à loja para o trocar. Ao fim de 14 ciclos disto, a marca rendeu-se à publicidade e ao esforço, passando a oferecer-lhe a vestimenta que tinha de ser grossa. A temperatura do oceano ia entre os 8.ºC e os 12.ºC, apta a pôr os dentes a tilintarem, frio que acrescia aos tubarões que cirandavam naquelas águas. No auge da idade, uma sessão normal de Webster prolongava-se até às duas horas. 

Ele recusava-se a falhar um dia que fosse, atirasse a vida as bolas mais curvas. Surfou no dia de nascimento da sua filha e, mais tarde, quando um cancro levou a sua mulher. Quando as pedras nos rins se infiltraram no seu corpo com dores, chegou a “rastejar na areia” para ser depois levado ao hospital. Sairia um documentário, em 2003, sobre a sua façanha, com nome apropriado: Step Into Liquid.

À pergunta da “Surfer” pelas piores condições que enfrentara, a deu uma resposta que assusta: “Caía chuva na horizontal, as estradas estavam alagadas, cheguei à praia e a minha prancha era abanada por todos os lados. Quando passei a rebentação, estava tanto vento que pedaços de chuva, do tamanho de balas, bombardeavam a minha cara. Quando cheguei a casa, vi-me ao espelho, tinha um olho inchado e metade da face com hematomas pretos e azuis.” Duas semanas mais tarde, outra tempestade atazanou a região, com o vento a soprar da direção oposta e Dale Webster não hesitou - “fiquei com hematomas similares do outro lado da cara.”

Só a saúde, pelas entranhas do corpo, o obrigou a parar. Tinha 66 anos, os médicos convenceram-no. De outra forma nada o afastava das ondas: nos EUA continental, nem sequer chegou ao estado do Utah; pelo ar, só viajou ao Havai, correndo para o mar mal aterrou. Incontáveis dias houve em que esteve sozinho na água, a “ver focas e leões marinhos”, lembrou ao “The New York Times”, com as vagas só para ele. Admitia pensar em “todas as coisas que ia falhar na vida”, mas cedo o prazer o reconquistava: “A única coisa que tive foi ter as ondas só para mim, a minha Disneyland.”

Se o ponto fosse os recordes, Dale Webster poderia ter descansado um dia ou outro, sem necessitar de ir aos 14,641 com os quais fixou o recorde do Guinness. A anterior marca estava nos 5.280 dias. Em parte, era uma questão de honra, à qual se rendia nas sessões que ninguém o viu completar. “Podia apanhar uma só onda e ninguém saberia. Mas tinha de ter honra. Não queria ser um mentiroso para ser admirado. Sempre quis fazer o que disse que faria”, explanou à “Surfer”, dizendo mais do que muita gente se pode gabar de dizer. 

Simples até ao fim, foi um singular prazer que o agarrou ao surf, desapegado de ir atrás das melhores ondas, nos melhores lugares, sob as melhores condições. “Quando vais à praia, tens que surfar as ondas que aparecem. Podes não apanhar tubos”, descreveria, mas “o ato de vestir o fato, ir para lá para fora e simplesmente estar na água é maravilhoso”. Morreu esta semana, aos 77 anos, segundo a “Surfer” e vários sites da especialidade. Com certeza teria surfado há pouco tempo.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt