Nemuro é uma pequena cidade na ilha Norte do Japão, apequenada pela região onde se encontra, na ponta mais oriental do território. Séculos de tradição, costumes e cultura a germinarem juntos, no mesmo caldeirão, cozinhados de modo mais cerrado, fizeram do sítio um de muitos, no país, onde a homogeneidade é mais patológica. Foi onde Tamaki nasceu e cresceu.
Chegada à adolescência, e a bem dos estudos, os pais patrocinaram-lhe uma vida em Sapporo, a capital e maior cidade da ilha. Algures, no vaivém da universidade, conheceu François, um haitiano de nascença, mas nova-iorquino de residência. Era um estudante, ali estava de passagem, e era negro, cor de pele vista raríssimas vezes em tal zona do Japão, nesses anos 90.
Tamaki e François caíram no goto um do outro, apaixonaram-se, mas o namoro manteve-se oculto dos pais dela, até ao dia em que o progenitor achou estar na altura do miai. Ao falar-lhe do datado costume de apresentar uma mulher a um homem, para culminar em casamento, a filha contou-lhe o que ele encaixaria como uma má nova - já conhecera um homem, e estrangeiro, e com tom de pele negro.
Considerou-o um desrespeito à família.
Não falariam durante mais de uma década, enquanto Tamaki e François se mudaram para Osaka, arranjaram trabalhos, assentaram e duas filhas provieram da relação. Nasceram Mari e Naomi, separadas por 18 meses, ambas à mercê do sonho inventado pelo pai, e sobre elas forçado, a partir do dia em que ficou a saber da história de duas irmãs americanas.
Das manas Williams que se juntaram em Rolands Garros, ainda pre-adultas, para jogarem em pares num quase cume do que o pai delas, um completo leigo e iletrado no ténis, imaginou para as filhas, muitos anos antes: ensiná-las a jogar com raquetes, uma bola e uma rede no meio, apesar de nunca ter sido tenista, ou tido um especial jeito para o ser.
Esta é a história resumida do resumo que o “New York Times” escreveu, há semanas, para o perfil de Naomi Osaka, antes de ela ser o que é desde sábado, a nova campeã do US Open.
É um conto que é contado por uma troca de país, tinha ela 3 anos, para ir ter com os cozinhados, cheiros e costumes haitianos dos avós paternos em Long Island, na Flórida. Lá teve acesso gratuito a ginásios e courts, espaços onde o pai forçava a ensino do ténis nas filhas, à moda da tentativa-e-erro. Em casa, aprendia uma variante de crioulo haitiano para comunicar com os avós, ouvia a mãe a falar-lhe em japonês e crescia numa nação de língua inglesa.
Naomi levou tareias da irmã, a quem só ganhou um jogo já na adolescência, e era posta de parte, ao início, nos treinos, pelo talento do qual parecia carecer. “Não me lembro de gostar de bater numa bola de ténis”, confessou, ao jornal norte-americano.
O ténis incutido pelo pai entranhou-se em Naomi. Aos poucos, superiorizou-se à irmã, empoleirando-se no físico a caminho dos 1,80m que lhe davam a altura, e a força, para bater poderosas pancadas de fundo de court. Os groundstrokes, como os americanos lhes chamam.
A vida estava nas raquetes, os estudos ficavam com as sobras de tempo, ensinados em casa, pelos pais, e a evolução fez-se à margem dos circuitos de competição, por o progenitor preferir fazer as filhas jogar contra raparigas mais velhas - logo, mais fortes, poderosas e difíceis de bater.
Tal e qual o modelo que lapidou as manas Williams.
Essa fuga ao convencional tenístico também os fez optar, tinha Naomi 13 anos, pelo Japão como a nação pela qual competiriam. Escolha que, em parte, causou o desequilíbrio abismal no apoio que o Arthur Ashe Stadium, em Flushing Meadows, dedicou a Serena Williams, nesta última final do US Open onde uma vitória elevaria a rainha do ténis aos mesmos 24 títulos do Grand Slam do recorde de Margaret Court.
Mas a calada, introvertida e tímida Naomi, assumidamente, sobrepôs-se pela potência à mulher mais titulada da história das raquetes. Disparou bolas limpas do fundo do court, serviu bombas a quase 200 quilómetros por hora, respondeu a serviços com pancadas imitadoras da força com que Serena fez carreira a destapar a impotência de adversárias.
A imperturbável Naomi, crescida na América e por demais japonesa na forma contida, respeitadora e estranhamente auto-comedida na forma com que vive cada pancada magnífica, ou ponto conquistado, ganhou. Aliás, aos 20 anos, quase dominou a sua primeira final de um major, contra a deusa do ténis que nunca vira até há menos de um ano, quando teve vergonha de a cumprimentar, ao cruzaram-se num balneário.
Resultaram as fustigantes sessões com o treinador, em que prolonga troca de bolas durante três minutos, dez vezes para lá do tempo normal e expectável num jogo, para a habituar à resistência e concentração para bater bolas sob desgaste. Resultou mesmo - até à final, Naomi levara 31 dos 54 pontos que disputou com mais de nove pancada, no US Open, contra os 19 em 41 de Serena.
A japonesa de nascimento e bandeira, embora americana na língua-mãe, nos maneirismos e nas referências de cultura pop - ouve Kendrick Lamar com phones, aos berros, quando entra nos estádios, e combina ir com a irmã a concertos de Beyoncé, na véspera de torneios -, venceu bem, mas a vitória da aparente nova estrela nascente do ténis está a ser ofuscada.
Porque Serena Wiliams, do alto do seu prestigiado estatuto, também pelo hype que a sua carreira, e o ser quem é, se gera a partir de tudo o que faça, recebeu três warnings durante a final e revoltou-se contra Carlos Ramos, o português juiz de cadeira que se limitou a aplicar, religiosamente, as regras do ténis.
Serena refilou, acusou-o de ser “um ladrão” e lhe “roubar um ponto”, exigiu-lhe um pedido de desculpas em pleno court e até fez com que os responsáveis da WTA aparecessem no campo, já depois de Patrick Mouratoglou, o seu treinador, aparecer, na televisão, a dar-lhe indicações - ou a fazer coaching, algo proibido no ténis, admitido até pelo próprio, apesar de ainda ter criticado o árbitro por ser “a estrela do jogo”.
Williams queixar-se-ia, depois, de sexismo, injustiça e desigualdade de tratamento entre homens, e mulheres, fabricando ruído inapropriado à campeã que é, e injusto para a nova campeã, contra quem perdeu. Amputou-lhe um momento felicíssimo, em que Naomi Osaka, visivelmente feliz, mas de sorriso contido, levantou o troféu com cara de quem parece estar a fazer mal a alguém.
Ou, então, são as suas muitas costelas japonesas - que o desporto nos fez tê-las como das culturas mais respeitadoras de quem perde, nos momentos de vitória - a falarem mais alto.