Foi uma tempestade perfeita... e as consequências ainda estão muito longe de ficar apuradas. A enorme cratera do Arthur Ashe Stadium, o maior estádio de ténis do planeta, acabou por simbolizar o explosivo caldeirão que é atualmente o tecido social dos Estados Unidos – com um árbitro português a tentar implementar os regulamentos e a acabar acusado de sexismo, racismo e misoginia, após uma final de singulares senhoras do Open dos Estados Unidos, na qual a campeoníssima Serena Williams perdeu as estribeiras.
No olho do furacão, Carlos Ramos tem tentado preservar-se. Recebeu centenas de mensagens de apoio de família, colegas, jogadores e ex-jogadores. Não tem ido às redes sociais. Diz-me que só lê artigos ‘equilibrados’ sobre o tema, criteriosamente escolhidos e enviados por amigos. Está seguro da sua atuação mas não pode ser citado sobre o encontro nem sobre a polémica em si. São regras pelas quais se regem os árbitros de ténis. Evitou andar pelas ruas no domingo seguinte, para não suscitar qualquer situação complicada, e está prestes a sair para uma eliminatória da Taça Davis entre a Croácia e os Estados Unidos, em Zadar, a partir de sexta-feira. “Estou bem, tendo em conta as circunstâncias. É uma situação chata, mas arbitragem ‘à la carte’ não existe. Não te preocupes comigo!”. Mas preocupei-me e fiquei quase em choque com o sucedido e todas as repercussões.
Conheço Carlos Ramos há quase três décadas, desde 1989; era ele então um jovem teenager que, depois de tirar precocemente o curso de arbitragem da Federação Portuguesa de Ténis, rapidamente começou a dirigir encontros em torneios de clube, em competições regionais e em campeonatos nacionais. Na altura eu estava quase a concluir a minha licenciatura em Coimbra e, paralelamente ao meu part-time enquanto treinador de ténis da Académica, também comecei uma carreira na arbitragem – tendo por mentor Jorge Dias, na altura o árbitro português mais conceituado e com uma carreira mais virada para as grandes provas no exterior, e por colegas Carlos Sanches, Carlos Ramos e Mariana Alves, entre outros.
Ganhámos estaleca a calcorrear o país e a arbitrar nos inúmeros pequenos torneios internacionais que João Lagos organizava para ajudar os tenistas portugueses a entrarem/subirem no ranking mundial. Muitas vezes arbitrávamos quatro encontros por dia em hardcourts (onde a bola não deixa marca, ao contrário da terra batida), sem juízes de linha que nos ajudassem a avaliar serviços mais rápidos ou bolas perto das linhas mais afastadas da cadeira, e quase rezando para que não fossem a três sets para podermos ter algum tempo de descanso.
Geração dourada
Do lote, acabei por ser a ovelha negra: Jorge Dias chegou a arbitrar finais da Taça Davis e da Fed Cup, tornando-se em 2001 no primeiro árbitro não britânico a dirigir uma final de singulares em Wimbledon (a dramática final em cinco sets de Goran Ivanisevic diante de Patrick Rafter); Carlos Sanches foi subindo na hierarquia até se tornar um dois seis supervisores do ATP World Tour que, entre si, têm a seu cargo a direção técnica de todos os torneios do primeiro escalão no circuito profissional masculino; Carlos Ramos e Mariana Alves já arbitraram finais de torneios do Grand Slam. Eu, agora, comento-as no Eurosport.
Incluo-me no texto para estabelecer uma comparação e evocar a importância da vocação. Muitas vezes dava mais atenção à técnica e à tática do que às linhas, sabendo que mais cedo ou mais tarde iria passar ao jornalismo especializado. O que viria a acontecer no início de 1992. Também os meus colegas eram apaixonados por ténis, mas denotavam algo que eu não sentia em mim: vocação. Para se ser árbitro é necessário possuir um estado de espírito muito especial. O modo como a carreira deles se desenvolveu comprovou a sua aptidão.
A convivência de semanas a fio nesses torneios de norte a sul do país e em cursos de arbitragem permitiu-me conhecer muito bem o Carlos Ramos; desde logo achei que, de todos, era aquele com mais qualidades naturais para ser um juiz de cadeira de elite: era um estudioso das regras e das situações de jogo, via bem, sabia gerir os jogadores. E cedo passou a exercer a sua atividade mais no exterior. Foi profissional do ATP World Tour; depois foi contratado em regime de exclusividade pela Federação Internacional de Ténis, a entidade que superintende os quatro torneios do Grand Slam, as principais competições por equipas nacionais (Taça Davis no masculino; Fed Cup no feminino) e até os torneios olímpicos.
Carlos Ramos foi colecionando finais até completar o ramalhete. Dirigiu a final masculina do centenário do Open da Austrália em 2005, com Olivia Newton-John a lançar a moeda ao ar no sorteio; arbitrou várias cimeiras em Roland Garros, no país onde reside com a sua mulher francesa e respetivos filhos; teve a seu cargo um épico duelo Roger Federer-Rafael Nadal na última edição de Wimbledon, sem o teto amovível no mítico Centre Court; completou o Grand Slam de carreira no Open dos Estados Unidos.
Nos últimos anos, a geração imediatamente a seguir à sua tem arbitrado mais finais – sobretudo elementos oriundos do país organizador do torneio do Grand Slam em questão. Mas Carlos Ramos permanece como um dos mais credenciados elementos da equipa arbitral da Federação Internacional de Ténis, escalonado para os encontros de maior responsabilidade, supervisionando os colegas e dando ações de formação. Foi sem surpresa que, aos 47 anos, voltou a ser escalonado para dirigir mais uma final de singulares de um torneio do Grand Slam. A decisão feminina do Open dos Estados Unidos. E logo com uma americana em compita: Serena Williams, entretanto tornada a melhor tenista de todos os tempos e transformada em ícone global – símbolo das minorias, das mulheres, da igualdade de oportunidades e mesmo do American Dream, com o seu trajeto desde o ghetto de Compton até ao estrelato, juntamente com a irmã mais velha.
Do ghetto para o prime-time
Venus e Serena são muito diferentes, tanto física como psicologicamente. Mas ambas cresceram a treinar protegidas pelas metralhadoras dos gangues em Compton, nos arredores de Los Angeles. Venus sempre foi mais plácida e discreta, Serena mais turbulenta e extrovertida. Especialmente quando atua no principal torneio do seu país e sob a luz dos holofotes em prime-time televisivo.
No US Open de 2004, teve a arbitrá-la Mariana Alves num equilibrado embate dos quartos de final com a rival nacional Jennifer Capriati; a juiz de cadeira portuguesa cometeu alguns erros, que por acaso foram sempre desfavoráveis a Serena Williams, que protestou vivamente. O facto de chover muito no dia seguinte fez com que as televisões passassem repetidamente o encontro da noite anterior e, subitamente, não se falava de outra coisa; esse encontro acelerou a implementação do sistema de arbitragem eletrónica HawkEye, cujos responsáveis certo dia me contaram por vezes chamá-lo Portuguese Eye – porque uma árbitra portuguesa lhes tinha proporcionado um negócio bem rentável (!!!). Está em vigor há uma dúzia de anos e é indispensável nos maiores torneios do mundo em piso rápido.
Em 2009, Serena Williams ultrapassou todos os limites comportamentais que até então se lhe tinham visto. Num momento crítico do embate das meias-finais diante de Kim Clijsters, foi-lhe marcada falta de pé pela juiz de linha japonesa Shino Tsurubuchi. Explodiu e disse que lhe metia a p... da bola pela p... da garganta abaixo. O ponto de penalidade significou a derrota no encontro e uma avultada multa de 175 mil dólares (151 mil euros). Ausente por lesão em 2010, no seu regresso a Flushing Meadows em 2011 atingiu a final diante de Samantha Stosur e, numa determinada jogada, soltou um sonoro “C’Mon!” quando ainda não estava completamente concluída. Perdeu o ponto e a cabeça, ameaçando a árbitra Eva Asderaki e dizendo-lhe que ela era “feia por dentro” (possivelmente por ser bonita por fora, digo eu).
Sete anos depois, novo episódio neste sábado. Mas com outras proporções. Por um lado, a maior parte das pessoas já se esquecera dos incidentes anteriores. Por outro lado, o estatuto de Serena Williams saltou para um plano muito superior: mais dez títulos do Grand Slam para um total de 23, a ultrapassagem dos 22 de Steffi Graf, o regresso como mãe após um parto com complicações que colocaram em risco a sua vida, a modelagem da sua pessoa como símbolo da luta por igualdade de oportunidades para as mulheres e a comunidade afro-americana – partindo para o Open dos EUA com uma capa na revista “Time” e uma histórica campanha publicitária da Nike.
Nessa final de sábado, como um dia disse o lendário baisebolista americano Yogi Berra, “déjà vu all over again”. Novamente no Arthur Ashe Stadium, perante o seu público e com o resultado já desfavorável perante a japonesa Naomi Osaka, Serena perdeu as estribeiras. Carlos Ramos aplicou as regras e seguiu os trâmites do código de conduta: primeira infração (coaching – recebimento indevido de instruções do exterior – contestado pela jogadora mas no final assumido pelo treinador), advertência; segunda infração (abuso de raqueta), um ponto de penalidade; terceira infração (abuso verbal), um jogo de penalidade que fez a jovem opositora Naomi Osaka descolar no marcador. No final do encontro, pandemónio absoluto.
“A ameaça de uma mulher forte”
Tendo comentado para o Eurosport as meias-finais masculinas da véspera, tive um dia de folga antes de comentar a final masculina, entre Novak Djokovic e Juan Martin del Potro. Mas quis ver a final feminina, até porque havia história em jogo e o Carlos arbitrava o encontro. O que aconteceu tem sido documentado pelos media nacionais, mas em Portugal não se tem bem a perceção do impacto do sucedido – sobretudo nos Estados Unidos, mas também em todo o mundo.
Nas discussões com o juiz de cadeira português, Serena Williams trouxe à baila o facto de ser mãe e o facto de que se fosse um homem não seria sancionada como foi. O pandemónio no Arthur Ashe Stadium tornou-se viral e virou um caso sociológico... com associações feministas e afro-americanas a juntarem-se a muitas outras vozes conhecidas e anónimas, entendidas ou leigas na modalidade, clamando por racismo, sexismo, misoginia, abuso de poder e muito mais.
Até eu experienciei o ricochete. Durante o segundo set, tweetei que Serena estava a tentar levar os protestos para o sítio errado; que não só Carlos Ramos não podia voltar atrás na decisão de atribuir uma advertência por coaching, como trazer a filha à baila era completamente desnecessário. E depois fiz questão de dizer: “Conheço Carlos Ramos há 30 anos, é uma das melhores pessoas e uma das pessoas mais justas que conheço. A Serena perdeu a cabeça e puxou por ângulos que nunca devia ter puxado. Tentarem fazer disto um problema de sexismo ou racismo está para além da minha compreensão; o Carlos Ramos sempre foi um árbitro que fez valer os regulamentos de modo justo diante de estrelas masculinas como Rafael Nadal e Novak Djokovic, por coaching ou violações de tempo. A Serena não lhe deu qualquer margem com o seu comportamento”. Rapidamente fui inundado no Twitter com mensagens de todo o tipo, a maior parte delas acusando-me de não ser isento, por ser amigo de Carlos Ramos, e mais as tretas do sexismo e do racismo.
A diferença é que a minha alusão à amizade com o Carlos Ramos não teve a ver com a amizade em si; teve mais a ver com o facto de que sermos próximos me permite ter conhecimento do modo como a sua cabeça funciona e de eu estar plenamente seguro de ele ter um processo mental isento e sensato (como lhe reconheci desde cedo) que não tem nada a ver com quaisquer alegações de sexismo ou racismo. Não valeu de muito: as pessoas não vão para as redes sociais mudar de ideias.
Até recebi mensagens de Patrick Mouratoglou, o treinador de Serena Williams, que conheço e de quem tenho excelente impressão (foi o grande responsável por Serena passar de grande campeã a melhor jogadora de todos os tempos). Falando-me de “homens que se sentem ameaçados por mulheres de forte personalidade”, dizendo-me que antes gostava de Carlos Ramos mas que foi a pior arbitragem que já tinha visto, e comparando uma sua maior complacência perante os tenistas masculinos face à dureza das sanções na final feminina.
Fiquei surpreendido por ele, estando também no olho do furacão e com tanto para fazer (acalmar a jogadora, preparar a sua rubrica ‘The Coach’ para o Eurosport), me enviar mensagens a meio da noite. Talvez por eu também ser português. O meu conselho foi o de se afastar, evitar mais qualquer controvérsia e dizer-lhe que o tempo cura – e que também há-de curar ‘isto’. E também que Serena esteve na origem da adoção da arbitragem eletrónica e pode agora estar também na origem de mudanças na polémica regra do coaching.
Esta regra pode mudar. Também a carreira do Carlos Ramos pode mudar, pelo menos nos Estados Unidos. Há associações feministas, como a NOW (National Organization for Women) a pedir à USTA (Federação de Ténis dos Estados Unidos) que não dê mais trabalho ao árbitro português. Com um documento deste teor absurdo e violento: “No que foi uma atitude gritantemente racista e sexista, o árbitro Carlos Ramos penalizou injustamente Serena Williams através de uma aberrante demonstração de domínio masculino e discriminação. Isso não teria acontecido se Serena Williams fosse um homem”, etc, etc.
Carlos Ramos seguiu as regras e aplicou-as como deve ser. Não houve qualquer abuso de poder – não da parte dele. Na verdade, o abuso de poder foi inverso: uma superestrela do desporto mundial, um ícone norte-americano a tentar condicionar a atuação de um ‘mero’ árbitro perante o seu público e no maior torneio do seu país. Sobretudo fora dos Estados Unidos, houve muita gente a considerar que a atitude da norte-americana foi um mau serviço à causa do feminismo e do antirracismo.
O que quer que aconteça, Serena Williams continuará a ser a melhor tenista de todos os tempos. E Carlos Ramos continuará a ser uma das melhores pessoas que conheço.
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