Onze horas e cinco minutos, três dias: a mais longa partida de ténis da história foi há 10 anos
David Ashdown/Getty
A 22 de junho de 2010 arrancava no court 18 do All England Club, casa do torneio de Wimbledon, uma batalha interminável entre John Isner e Nicolas Mahut. O último ponto só se jogaria dois dias depois, numa partida tão longa que nem o placard electrónico do court aguentou. E que ajudou a mudar algumas regras do ténis
Exagerar é coisa própria do ser humano. Se gostamos muito de um qualquer prato, somos capazes de comer "100 de uma vez". Se temos medo de alguma coisa, somos capazes "de morrer" se nos depararmos com ela. Naturalmente, não vamos conseguir comer 100 pratos de arroz de cabidela numa só refeição nem sequer vamos ter uma apoplexia se virmos uma barata a passear-se no chão - é só jeito de dizer.
É possível que o treinador de John Isner estivesse também ele a hiperbolizar quando antes daquele Wimbledon de 2010 viu o seu jogador fisicamente tão bem preparado que lhe disse, a brincar, que seria capaz de jogar durante "10 horas". A história foi contada pelo próprio Isner ao site do torneio horas depois do norte-americano e do francês Nicolas Mahut jogarem os últimos pontos daquela que foi a mais longa partida de ténis da história.
Onze horas e 5 minutos, espalhadas por três dias. Os primeiros pontos jogaram-se a 22 de junho de 2010, há precisamente 10 anos. Os últimos já durante a tarde do dia 24. Pelo meio, no segundo dia de batalha, Isner e Mahut estiveram mais de sete horas em campo. No final, um score inédito, que quebrou todos os recordes da história do ténis: 6-4, 3-6, 6-7(7), 7-6(3) e 70-68. Lá se vai o exagero.
No papel, o encontro entre John Isner e Nicolas Mahut era apenas mais um jogo da multitudinária 1.ª ronda daquele Wimbledon de 2010, atirado para o longínquo e apertado court 18, onde cabem pouco mais de 700 pessoas. Isner era então um jovem de 25 anos, cabeça de série n.º 23 em Londres e mais reconhecido pela sua altura (2,08m) do que exatamente pelo seu longo currículo. Já Mahut era apenas 148 do Mundo, um francês com alguma apetência para a relva e jeito para pares. Entre os dois, uma pancada de referência: o serviço.
Apesar da grande diferença entre o ranking de ambos e do facto de Mahut vir de uma fase de qualificação difícil, os quatro primeiros sets foram de grande equilíbrio. Começou melhor Isner, o francês respondeu com vitória nos dois parciais seguintes e ao 4.º Isner empatou tudo novamente. Com tudo isto, eram 21h07 em Londres, do céu já não vinha claridade e o 5.º e decisivo set teria de ficar para o dia seguinte.
Há 10 anos, não havia tie-break no 5.º set em Wimbledon, o que queria dizer que o primeiro jogador a vencer dois jogos seguidos depois do 5-5 passaria à ronda seguinte. Às 14h05, Isner e Mahut regressaram ao court 18. Às 21h10, o marcador estava nos 59-59, numa altura em que todos os recordes já tinham sido batidos. Pelas 17h45, a partida ultrapassou as 6 horas e 33 minutos, deixando para trás o duelo entre Fabrice Santoro e Arnauld Clement na 1.ª ronda de Roland Garros em 2004. Mais tarde, aos 50-50, e já seguro de estar a ver história naquele court que à história não parecia estar destinado, o público, que então já se juntava bem para lá dos limites do court, empoleirando-se em qualquer local que permitisse ver uma frincha do encontro, levantou-se numa ovação de pé aos dois jogadores, mal sabendo que ainda haveria muito para jogar. O placard digital do campo, em que se podia acompanhar a marcha do marcador, foi abaixo, já que não estava programado para números maiores que 50, o que valeu uma noitada de trabalho para os funcionários da IBM.
Sete horas e cinco minutos depois e sem conclusão à vista para o 5.º set - Isner não aproveitaria um match point com o marcador em 59-58 -, a falta de luz natural levou o duelo para um 3.º dia. Por essa altura, o encontro levava um total de 10 horas certas e os últimos momentos da maratona haviam sido penosos para os dois jogadores, já em óbvio sofrimento. Mas da bancada chegava um cântico em uníssono: "Queremos mais, queremos mais".
E teriam, no dia seguinte. Mais 65 minutos de ténis. Aos 69-68, Isner conseguiu finalmente converter um match point, apenas o 5.º match point num 5.º set que já levava mais de oito horas, fechando o encontro interminável em 70-68.
Poucas horas de sono, muito gelo. E muita comida
A história oral daquela batalha seria depois contada pelos seus protagonistas, jogadores e árbitro de cadeira, o sueco Mohamed Lahyani, que durante o 2.º dia optou por não fazer qualquer pausa, nem sequer uma ida aos lavabos, com receio de perder o foco naquele duelo tão intenso - e que, às páginas tantas, o fez até perder a voz.
Para os jogadores, o momento mais crítico aconteceu após a segunda paragem. "Quando parámos no final do 2.º dia, pensava que era um sonho", diria Isner ao site do Wimbledon. E por "sonho" o norte-americano não falava em metáforas, não falava de algo mágico ou fantástico, mas sim de um qualquer estado transitório, de uma sensação de não estar no sítio em que de facto estava. De sentir um cansaço tão grande que não conseguia sequer raciocinar: "Estava a delirar. Porque não conseguia acreditar que um jogo assim fosse possível".
O norte-americano seria então "salvo" por um compatriota habituado a dar-se bem na relva do All England Club, Andy Roddick, finalista em 2004, 2005 e 2009, que providenciou um verdadeiro banquete calórico a Isner e à sua equipa: três caixas de pizza, frango e puré de batata. "Teria comido 12 Big Macs", disse o gigante. Voltamos à teoria dos exageros - e daí, face ao que se tinha passado nesse dia, talvez não.
Tanto Isner como Mahut pouco dormiram nessa noite. O norte-americano quatro horas, o francês três. Mas que sono, tinham de dar o máximo de descanso aos músculos moídos e por isso ambos passaram muito tempo em banhos de gelo entre o 2.º e o 3.º dia de jogo. Depois do mítico encontro no court 18, onde ainda hoje há uma placa comemorativa do duelo, ambos ainda continuaram em prova: Isner seguiu para a 2.ª ronda em singulares, mas mal conseguiu dar réplica a Thiemo de Bakker. Já Mahut caiu também rapidamente no torneio de pares.
Os meses seguintes fariam vir ao de cima as consequências daquele esforço sobre-humano, tanto ao nível físico como mental. Em plena caminhada para o torneio do Grand Slam seguinte, o US Open, um exausto Isner chegou a desistir do Masters de Cincinnati para regressar a casa e descansar junto da família. Já para Mahut, o esforço inglório de lutar durante 11 horas num campo de ténis e sair derrotado valeu um período de luto: no livro "O jogo da minha vida", confessou ter sofrido de depressão nos três meses seguintes e de problemas físicos nas costas.
Mas ganhariam um lugar na categoria dos super-homens, o respeito e a memória do público e a amizade um do outro. "Vai ser algo que eu e o Nic vamos partilhar para sempre. Acho que nem cinco palavras tinha trocado com ele antes do jogo. Agora quando o vir nos torneios vamos sempre partilhar isto. Fico feliz por ter acontecido", diria então Isner. Nos anos seguintes, o norte-americano e o francês tornaram-se bons amigos. E curiosamente, no ano seguinte, um caprichoso sorteio voltou a colocar os dois frente a frente na 1.ª ronda de Wimbledon - dessa vez, o norte-americano arrumou a questão em três rápidos sets.
Uma partida que ajudou a mudar o ténis
A lista de recordes da batalha é longa e quase tão interminável quanto o próprio encontro. Para lá da duração total, o 5.º set foi o mais longo da história do ténis. Na verdade, com oito horas e 11 minutos, o 5.º set seria mais longo per se que qualquer outra partida oficial alguma vez disputada. Foi também o encontro com mais jogos (183) e John Isner bateu por larga margem o recorde de mais ases batidos numa única partida (113). O anterior líder era Ivo Karlovic, com 78 ases. Mahut, com 103, colocou-se logo a seguir na lista. Mesmo tendo saído derrotado, Mahut bateu o recorde de pontos conquistados numa só partida (502). Estes são apenas os mais importantes.
E são recordes que muito provavelmente irão perdurar. Porque o encontro abriria ainda a discussão sobre a possibilidade de todos os torneios do Grand Slam adoptarem tie-break no 5.º set (3.º set para as senhoras), à semelhança do que já acontecia no US Open. Apesar da resistência inicial, em 2019 o Open da Austrália adoptou o super tie-break (ou seja, até aos 10 e não até aos 7) no 5.º set e o Wimbledon optou por seguir para tie-break no caso do 5.º set chegar aos 12-12. Neste momento, apenas Roland Garros mantém-se sem tie-break no derradeiro set.
E foi novamente um encontro com John Isner que levaria a organização do Wimbledon a avançar definitivamente para o tie-break, depois da meia-final de 2018, entre o norte-americano e o sul-africano Kevin Anderson se ter estendido até às seis horas e 36 minutos, com 26-24 no 5.º set e vitória para Anderson, que na final, em claras dificuldades físicas, acabaria atropelado por Novak Djokovic.