Ténis

O Djoker agora é uma anedota

O Djoker agora é uma anedota
Dean Mouhtaropoulos/Getty
Nos primeiros anos no circuito, Novak Djokovic era o folião, o miúdo que imitava na perfeição os seus colegas e fazia rir toda a gente. Nos últimos anos, e em particular nesta quarentena, conhecemos o lado lunar do sérvio, que diz não acreditar na vacinação e que promove pseudocientistas nas suas redes sociais. A organização do Adria Tour foi uma espécie de tempestade perfeita: um torneio de exibição com público, sem distanciamento social, com os tenistas a conviverem em discotecas e jogos de futebol e basquetebol. Resultado: uma debacle com já quatro casos de covid-19 entre os atletas, o último dos quais, o próprio Djokovic, que sai desta crise com a reputação em baixa

Quando apareceu, Novak Djokovic era uma espécie de aberta num céu cheio de gente muito séria. Longe do estilo clássico de Roger Federer ou da força bruta de Rafael Nadal, o sérvio parecia divertir-se mais que toda a gente num court de ténis. Nós, portugueses, pudemos ver isso mesmo no Estoril Open de 2007, tinha Djokovic apenas 19 anos: era normal vê-lo entrar em campo com uma camisola do Benfica e nem os assobios das bancadas lhe tiravam a ginga e o sorriso na cara.

Djokovic era assim, livre e leve, ainda fora da órbita mediática de Federer e Nadal e das responsabilidades que isso acarreta. Rapidamente, o sérvio tornou-se num tipo popular, não só porque era bom jogador mas também porque era acessível e bem-disposto, um boy next door, o típico animador do grupo. Nesse mesmo 2007, durante um treino no torneio de Queen’s, a BBC apanhou Djokovic a imitar com grande exatidão e timing cómico os tiques de Maria Sharapova e Rafael Nadal antes do serviço. As imagens tornaram-se virais e fizeram mais pela popularidade do sérvio do que qualquer campanha de marketing ou sucesso desportivo. Do nada, vários vídeos de Djokovic a imitar colegas surgiram online e em setembro, durante o US Open, fez o seu show de imitações para 24 mil pessoas no Arthur Ashe Stadium.

Nos anos seguintes, tornou-se comum ver o sérvio dar asas à sua veia mais divertida em jogos de beneficência ou a deliciar o público com danças ou brincadeiras com apanha-bolas. E tudo isto valeu-lhe uma alcunha. “The Joker”, ou “Djoker”, uma jogo de palavras entre o seu nome e o vocábulo inglês “joker”, ou seja, brincalhão, cómico.

Ao carisma que jorrava por esses dias, rapidamente Djokovic começou a juntar títulos. Em 2008 arrancou o ano a ganhar o Open da Austrália e em 2011 venceu três dos quatro torneios do Grand Slam. Até 2016 tornou-se paulatinamente no grande dominador do circuito, mas o seu jogo duro, a elasticidade, a resistência que o fazia chegar a toda e qualquer bola e a sua tenacidade no fundo do court não suscitavam nos amantes do ténis a mesma paixão que o virtuosismo de Federer ou a agressividade de Nadal.

Em 2017, vieram as lesões, a falta de confiança e as dúvidas. Mas afinal o que movia Djokovic? Em que pensava ele fora dos courts? As questões sobre o fim do estado de graça aumentaram quando Djokovic dispensou Boris Becker, o seu treinador de longa data Marian Vajda e os seus preparadores físicos, mas manteve na equipa Pepe Imaz, antigo tenista espanhol e agora uma espécie de guru espiritual, que acredita no poder curativo de longos abraços e no papel da paz, do amor e da espiritualidade para o bem-estar dos atletas.

A filosofia mais holística de Imaz terá chocado, e muito, com Becker e Vajda. O antigo tenista alemão abandonou a equipa de Djokovic com insinuações de que o sérvio tinha deixado de treinar-se com o mesmo afinco depois de começar a trabalhar com Imaz. E Vajda, quando voltou à equipa técnica de Djokovic em 2018, depois de um 2017 para esquecer do jogador, exigiu o afastamento do guru, por não querer mais “intromissões de agentes externos”, disse então à imprensa eslovaca, de onde é natural o técnico. Para Vajda, a filosofia, por mais cor de rosa que seja, não se coaduna com a alta competição.

E, curiosamente, a partir daí, Djokovic voltou à melhor forma, voltou a vencer torneios do Grand Slam e ao número 1 do ranking mundial, posição que ocupava antes do ténis parar devido à pandemia da covid-19. Uma pandemia que não veio nada a calhar para Djokovic. Porque em 2020, as motivações, crenças e atitudes daquele rapaz que aos 19 anos era o brincalhão do circuito voltaram a deixar muito boa gente de pé atrás.

Das vacinas ao infame torneio

Os tempos de quarentena de Novak Djokovic foram, no mínimo, polémicos. Tudo começou com uma declaração num live do Facebook com outros atletas sérvios, em que o tenista se assumiu contra a vacinação. “Sou contra as vacinas e não gostava de ser forçado por alguém a tomar uma vacina como condição para viajar”, disse então Djokovic.

Distanciamento social no Adria Tour? Nem por isso
Srdjan Stevanovic/Getty

As declarações do sérvio, em plena pandemia e numa altura em que a comunidade científica se unia para tentar encontrar uma cura para a covid-19, foram recebidas com perplexidade e desconforto - a desinformação na boca de um interlocutor de tão alto perfil torna-se ainda mais perigosa. E um comunicado enviado posteriormente ao “The New York Times” não ajudou a suavizar a situação.

“Não sou nenhum especialista, mas quero ter a opção de escolher o que é melhor para o meu corpo”, escreveu o líder do ranking mundial, de 33 anos, que sublinhou ainda manter a “mente aberta” sobre o tema.

Mais tarde, Djokovic promoveu uma série de diretos nas redes sociais onde deu palco a Chervin Jafarieh, um especialista em pseudociências que perante milhares de seguidores do sérvio espalhou, por exemplo, a teoria de que as moléculas da água podem ser alteradas pelas emoções e que “o poder da oração, através da gratidão, podem tornar a comida mais tóxica e a água mais poluída na mais curadora das águas”.

Para juntar a estas polémicas, o pai do sérvio, Srdjan Djokovic, também quis o seu tempo de antena. Depois de em fevereiro acusar Federer de ter ciúmes do filho, na última semana, numa entrevista ao portal “Sportklub” voltou a mostrar antipatia pelo suíço, a quem não parece perdoar a popularidade que aos quase 38 anos ainda mantém. “O Federer só joga porque não consegue conceber que tanto o meu filho como o Rafael Nadal sejam melhores que ele”, disse, antes de aconselhar Federer a ir “criar os filhos” e “esquiar”. Publicamente, Djokovic nunca censurou as declarações do pai.

A mulher de Djokovic, Jelena, também entrou no ramalhete das polémicas, ao partilhar um vídeo no seu Instagram que promovia teorias da conspiração que ligavam a covid-19 à tecnologia 5G.

Nada, no entanto, ficará na memória como a tempestade perfeita que se formou no Adria Tour, uma prova organizada por Djokovic, com o apoio do seu irmão mais novo Djordje e de Goran Ivanisevic, antigo jogador e um dos treinadores do sérvio. As duas primeiras etapas do torneio, disputadas em Belgrado (Sérvia) e Zadar (Croácia), tiveram público nas bancadas, sem qualquer vislumbre de máscara, pouco ou nenhum distanciamento social e muitas atividades paralelas ao jogo.

Djokovic e os restantes convidados participaram em jogos de futebol, basquetebol e divertiram-se em discotecas da zona, sem qualquer preocupação com a pandemia. Grigor Dimitrov foi o primeiro a testar positivo e daí para cá os casos têm-se reproduzido: Borna Coric seguiu-se ao búlgaro, Viktor Troicki e a mulher também foram infetados, tal como o treinador de Dimitrov e um dos preparadores físicos de Djokovic.

Dimitrov foi o primeiro dos tenistas a testar positivo à covid-19 após o Adria Tour
Srdjan Stevanovic/Getty

Para completar a debacle, esta terça-feira chegou a notícia de que o próprio Novak Djokovic, que numa primeira instância se terá recusado a fazer o teste por não ter sintomas, também testou positivo ao novo coronavírus, assim como a mulher.

Presidente da associação de tenistas, as ações irresponsáveis do sérvio estão a ser altamente criticadas, até por aqueles que lhe são próximos. Andy Murray, um dos bons amigos de Djokovic, não teve pejo em sublinhar que o Adria Tour deu “uma péssima imagem ao ténis”. O Djoker agora é mais uma anedota do que o miúdo livre e solto de outros tempos.

Da parte de Djokovic chegam agora as desculpas. “Foi tudo feito com a melhor das intenções. O nosso torneio tinha como objetivo unir e partilhar uma mensagem de solidariedade e compaixão nesta região dos Balcãs e ajudar os tenistas a terem alguma competição enquanto o circuito está suspenso”, disse em comunicado. De facto, a ideia era boa: os tenistas convidados não cobraram prémio de presença e todo o dinheiro de bilheteira será para aplicar em projetos solidários. Mas a imprudência do comportamento dos tenistas deixará provavelmente para sempre uma marca na reputação do sérvio, que viu a pandemia deixar a descoberto o seu lado lunar.

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