“Aprendi que tenho de ser muito melhor”. Das mais individuais formas de praticar desporto que há, o ténis é, também, das mais prováveis de apanhar na curva quem o joga, por tão solitário estar o tenista também quando não o está a jogar, mas chega à altura de falar sobre o que jogou, o que vai jogar ou acerca do que está prestes a ter de lidar, sozinho, num court, no caso um azul, de piso rápido, aperaltado como uma greta na crosta da terra em que as duas paredes se forçam uma contra a outra.
Daniil Medvedev estava a ser apertado entre duas fases da história. A sua, do tenista-girafa russo implacável na constância de pancadas que aos 25 anos maturou, à procura da primeira conquista de um Grand Slam, e a de Novak Djokovic, o papão de todos os desafios e pesadelo para seja quem for o adversário, que estava a um jogo de ficar proprietário dos quatro Grand Slams de 2021 e, por sinal, de 21 desses torneios na carreira. A um jogo, só um, de se agarrar a um feito do qual Roger Federer e Rafael Nadal, os dois da vida lendária que costumam cair no goto de muita gente antes do sérvio, nunca se abeiraram.
Pelo choque de histórias, pela maior barrigada de história passível de ser escrita para o lado de Djokovic, por o sérvio ser quem é e porque, em janeiro, Medvedev foi derrotado por ele, sem grandes alaridos de competitividade, na final do Open da Austrália, o russo dá aquela resposta ao entrevistador do US Open, sozinho e a meio do corredor para entrar no campo. Tinha de ser muito maior e foi-o, feito motor sem um deslize na engrenagem durante o primeiro set, em que quebrou o serviço a Novak logo no jogo inaugural.
A impassibilidade tomou conta de Daniil. O russo jogou como uma máquina, sem uma falha que fosse na engrenagem, a despachar ases e com prontidão máxima no serviço, como se estivesse com pressa para ir a algum lado enquanto falhava quase nunca perante os erros frequentes, portanto incomuns, de Djokovic. O nunca campeão de um Grand Slam ganhou por 6-4 ao campeoníssimo destas andanças, mais encrencado do que o costume no jogo de pés (chegou a bater contra as próprias coxas, em clara frustração após falhar uma pancada numa bola que lhe foi à figura).
As direitas disparadas da raquete de Medvedev mantiveram a constância no segundo set, acompanhadas pela mesma brevidade no serviço que colocava à lupa, com regra e esquadro, acrescentem os instrumentos precisos da geometria que acharem melhor, todos servirão de reforço a quão estável era o russo a martelar o campo de Djokovic com bolas servidas para os cantos dos quadrados.
O fascinante de ver era torturante de lidar e, ao terceiro jogo — e, sobretudo, depois do juiz de cadeira fazer reset a um ponto em que Medvedev teve um raro segundo serviço manso, por se ouvir um berro na bancada durante a troca de bola, quando Djokovic jogava um ponto de break —, o sérvio passou-se.
Gritou empreitadas de frustração na sua língua, fez o gesto de bater em alguém com a raquete e depois esborrachou-a contra o chão com fúria. Nem o seu momento de clausura zen no descanso entre pontos, quando escondeu a cabeça com o abat-jour da toalha branca e se lhe viu o peito a reagir com respirações fundas, o atinou com o seu eu interior, o eu do costume, o Novak Djokovic robótico na sublimidade.
Medvedev quebrou-lhe o serviço de novo e levaria igualmente o segundo set, ao terceiro ponto que teve para o fazer. À quinta vez que perdera o parcial inaugural neste US Open, o sérvio juntou-lhe a segunda ocasião em que um adversário lhe ganhou os dois primeiros atos de um encontro. E, logo de seguida, com a mesma diligência de pressa com que distribuía as bazucas do fundo do court que jamais deram uma bola que fosse para o adversário bater sem pressão, Medvedev voltou a quebrar o serviço no jogo inaugural do terceiro set ao fantasma de Djokovic.
Desfeito assim, novamente desta forma, parecia que o tubo do aspirador do Além lhe surrupiara a alma sem que alguém desse conta, sem que o próprio sérvio se apercebesse logo. Mas, a partir desse momento, Djokovic pareceu simplesmente um esqueleto preso por músculos a reagirem por memória, um corpo inerte a rasgos de genialidade.
Era incerto o paradeiro da fiável esquerda paralela com que vira tantas arrelias contra o feiticeiro que esteja do outro lado da rede, ou da espetacular resposta ao serviço que sempre o coloca imediatamente a atacar quando é suposto, diz o ténis, que se defenda. A única certeza é que tinham sumido de vez.
Escrever que Novak Djokovic está arrumado na espiral que o suga para o ralo de um jogo dá nervos aos dedos, a sensação é de se estar a arriscar um crime, este é o tenista dos feitos hercúleos, das tantas vezes que aparentou estar atropelado e acabou por ser ele a alcatifar os outros com a demonstração, e mais uma, e outra, e enésimas outras, de ser uma lenda a formar-se no seu habitat natural. A fazer de qualquer tenista uma presa, até daqueles dois que está há 15 anos a perseguir no número de Grand Slams e nas preferências dos corações das gentes que enchem os estádios.
O sérvio ruiu, aos poucos, com erros estapafúrdios e bolas falhadas sem tino. Chegou a estar a perder por 4-0, sem mais truques além de subir à rede porque sim e a fortaleza das pancadas de Medvedev na linha de fundo o despedaçarem de qualquer esperança. Djokovic acabaria a final com 47 subidas à divisória, cada uma a falir-lhe um pouco mais as hipóteses de sucesso até Daniil se ver a servir com championship point e 5-2 no marcador, depois de o sérvio trocar a suada camisola azul por uma branca.
Mas, aí, com Djokovic de vestimenta nova para o que parecia ser a queda da cortina, entrou a condição humana, o tiquetaque mecânico do relógio de cuco que mora na cabeça de todo o desportista, em qualquer modalidade. Com o público a desrespeitar o código de conduta do ténis, apupando e berrando antes de Medvedev servir cada bola, o russo falhou quatro serviços. Quando farejou o ligeiro odor da sua história poder esmagar a gloriosa história de Djokovic, cedeu à barulheira que só ele escutava dentro da sua mente.
O esqueleto de Daniil foi chocalhado pela pressão, os nervos, a ansiedade, chamem-lhe o que acharem melhor, mas o pulso do russo tremeu perante a oportunidade de cortar o que seria a maior árvore plantada na carreira de Djokovic, de quem, no final, disse achar ser “o melhor tenista da história”. Esse tenista ainda ganharia o seu jogo de serviço seguinte quase à parte desta final, tão fácil que lhe foi, provocando um momento de euforia no estádio que se encheu de apoio ensurdecedor, como se um soro de esperança tivesse sido espalhado pelo ar.
E, aí, Novak desfez-se em choro e empanturrou-se em lágrimas, a soluçar enquanto enterrava a cara na toalha quando se sentou no seu banco antes de Daniil Medvedev não desaproveitar a segunda oportunidade que teve de conquistar o seu primeiro Grand Slam e, desajeitadamente, se deixar tombar no chão como os futebolistas de consola fazem caso quem os controla premir uma certa combinação de botões no comando — o russo explicou-o no discurso da vitória, prova do fosso geracional que há entre ele e o trintão que derrotou.
Djokovic não o disse diretamente, mas aquele foi o momento de uma carreira que não equivale a canecos físicos ou a mais um recheio do museu lá de casa. No court onde durante tantos anos, em tantíssimos duelos contra Federer ou Nadal, o público escolheu religiosamente empurrar o suíço ou o espanhol contra o sérvio, Novak encheu o depósito de revolta para se insurgir contra a mestria desses outros lendários e a avalanche de desapoio que sentia. Naquele momento, todo um US Open desenterrou todos esses anos para devolver a alma a Djokovic.
Gracioso como sempre foi nas derrotas, o sérvio admitiu ter o coração atolado com esse gesto breve, mas eterno, Djokovic deixou a sublime chance de uma carreira no court onde Medvedev, finalmente, talvez tenha acabado de descolar o périplo conquistador da sua, não tardará e saberemos se este foi o sinal de que o russo é o herdeiro de muitas coisas boas no ténis.
O que ficámos a saber, sem a mais microscópica dúvida, é que há formas de ganhar quando se perde, até quando a derrota tem toneladas de perfume em cima com a fragrância de uma irrepetível oportunidade perdida. Novak Djokovic não aproveitou a chance de uma vida, mas viveu o suficiente no ténis para ser consensual no coração de toda a gente.