Ténis

A dor é o jogo de Nadal

A dor é o jogo de Nadal
ADRIAN DENNIS/Getty

Uma lesão muscular abdominal trouxe a Rafael Nadal uma nova camada de dor, para lá daquela que já diariamente carrega. Frente a Taylor Fritz, ela pareceu por momentos tomar conta do espanhol, o seu pai pediu-lhe até para baixar os braços e acabar com aquele sofrimento. E ele disse que não: numa batalha de cinco sets, o maiorquino voltou a desafiar os limites, apurando-se para as meias-finais de Wimbledon, onde vai encontrar Nick Kyrgios

O senhor Nadal tem os olhos do filho ou o filho tem os olhos do pai, neste prosaico dilema do ovo e da galinha transposto para a passagem dos genes está o Nadal sénior de cabelos longos, mas já algo parcos, sentado no canto reservado à entourage de Rafael. Quando o tenista, no court central de Wimbledon, caminha sem raquete na mão em direção à entrada para os balneários, a câmara fita-o no momento em que esbraceja e põe uma cara de “que se lixe”, encolhendo os ombros enquanto lança os braços para o ar que nem esparguete.

O que Sebastián parecia tentar transmitir a Rafael quando o jogador de maior património de Grand Slams se recolhia à reclusão de um tempo de desconto médico, para tratar de uma maleita na zona abdominal, era para que o filho abandonasse a relva e desistisse de jogar contra Taylor Fritz. Em gestos podem caber milhentas palavras, dependerá sempre do olho do interpretador, mas o pai de um filho a quem a vida tem lembrado, a mal, a idade que tem, não quereria que Rafael sofresse mais. Ao seu lado e menos exuberante, a irmã do tenista pendia para a mesma linguagem corporal.

As cirurgias à apendicite, ao tornozelo, a um joelho foram-se juntando à crónica resistência a síndrome Müller-Weiss que lhe degenera, desde os seus vinte e poucos anos, o pé que hoje o faz coxear e obriga a dosear os dias com anti-inflamatórios, portanto Rafael sabe o que é dor, conhece-a, vive com uma lesão em vez de ser um tenista lesionado. E o pressuposto fraternal terá sempre um pai a querer o melhor para um filho e as aparências sugeriam que o progenitor urgia ali o mais novo a não insistir. Aos 36 anos e à 47.ª vez que jogava nos quartos-de-final de um Grand Slam, poderia abdicar de resistir.

Mas, nem 10 minutos volvidos, o espanhol retornou do balneário, caminhando um quê apressadamente rumo ao banco para logo pegar na raquete e seguir para o seu lado do campo onde já perdera o primeiro set, por 6-3, de forma não muito sua: preso a movimentar-se, algo lento a reagir e com as suas pancadas de esquerda a deixarem a bola demasiadas vezes no miolo do court, Taylor Fritz superou-o. Quando, no segundo parcial, os esgares de dor de Nadal a cada serviço que lhe puxava pela contração dos abdominais o fizeram chamar o médico, havia um 3-3 no marcador depois de o espanhol estar a ganhar por 3-0.

Quando voltou, porém, Nadal equivaleu-se a ele próprio, a esquerda a farejar os cantos ao campo avistou-se, os passing shots a esquivarem-se das aventuras do norte-americano perto da rede também espreitarem e o espanhol levou o segundo set por 7-5. No terceiro, a cara de quem só reinou no cume de Wimbledon por duas vezes — em 2008, na célebre final contra Roger Federer que muitos guardam como o melhor jogo de ténis de sempre, e em 2010 — voltaria a denunciar dor mais vezes e um 6-3 sorriria a Fritz.

E de novo a cabeça de Nadal entre os joelhos, sentado no banco, a falar para baixo e para o médico que voltou a chamar para o acudir.

Clive Brunskill/Getty

Aguentou mais uma vez Nadal, aquela cara não lhe é comum, mas muito comum é a resiliência. Logo a abrir o 4.º set, quebrou Fritz, como quem começa de novo, mas logo de seguida o norte-americano devolveu-lhe a gracinha, o que levou a nova imagem inaudita de Nadal: o espanhol de cabeça encostada ao painel do topo do court, numa qualquer demonstração de vulnerabilidade. E quebrou Fritz logo a seguir.

Foi incaracterístico o 4.º set para ambos os jogadores, com breaks e contra-breaks. Fritz empataria de novo aos 4-4 mas Nadal parecia subitamente mais fresco, a movimentar-se melhor, sem os esgares de dor de cada vez que aquele abdómen se aventurava em posições menos ortodoxas. Na altura decisiva, o espanhol chegou aos 6-5 e serviu para forçar um cinco set. Com sucesso.

No 5.º set foi o mais equilibrado entre dois jogadores que até já se tinham encontrado este ano, na final de Indian Wells, onde um também fisicamente diminuído Rafael Nadal caiu com surpresa face ao jogador da casa. Agora em Londres, na relva cada vez mais rala do Centre Court, houve aqui um break para cada lado e o jogo decidiu-se onde normalmente estes duelos feito de balanças se decidem: no super tiebreak, que vai até aos 10 e não aos sete como habitualmente.

Nestes momentos de pressão, ter 36 anos e 22 títulos em torneios do Grand Slam vale algo face aos 24 de cara imberbe de Fritz e não há dor abdominal, não há desespero, dúvida que bata isto: Nadal arrancou com um 5-0, o norte-americano ainda reagiu, mas não passaria dos 4 pontos enquanto o espanhol rangeu os dentes para chegar aos 10. E aí vai ele para mais uma meia-final de Wimbledon, precisamente no aniversário dessa partida dos deuses com Federer em 2008. O que o fez continuar? Algo que talvez não se possa explicar como podemos explicar um desconforto num músculo do abdómen. O espanhol pensou em desistir, sim, assumiu o homem que vive com a dor, mas a quem a dor continua a massacrar, um pouco mais, num sítio diferente. Mas “o court, a energia, qualquer coisa”, diria, foi essa aura etérea de Wimbledon que o fez não seguir os conselhos do pai, há sempre boas alturas para desobedecer aos progenitores e esta foi seguramente uma delas.

Na sexta-feira haverá outro desafio, físico e também mental, com um jogador que é uma espécie de seu némesis: Nick Kyrgios, o bad boy australiano que anda a passear algum do melhor ténis da sua vida por Londres. É a primeira vez que está numas meias-finais de um torneio do Grand Slam e talvez a responsabilidade lhe pese, para o bem ou para o mal. Nadal, para já, só quer estar pronto para pisar de novo aquela relva cada vez mais térrea. A dor é o seu jogo, talvez seja até o seu alimento. Ninguém a conhecerá como ele. E ninguém a dominará melhor.

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