O tempo também lhe haverá de bater à porta, mas não é já. Novak Djokovic vai jogar a final de Wimbledon

Editor
Não há corpos estranhos quando se prolonga a vida até à segunda semana de um Grand Slam e respetiva meia-final. É um lugar já de alquimia, lá mora a nata dos tenistas, a água e o azeite já se fundem, se lá chegou é porque todo o tenista é muito bom, mesmo que para confundir Cameron Norrie com o excelso do outro lado da rede fosse preciso um grau obeso de dioptrias. Canhoto de raquete e destro no lápis, o britânico nascido sul-africano e crescido neozelandês, em Auckland, onde uma treinadora o ensinou a ser um jogador esquerdino, ele está a mundos de distância da parede humana que enfrenta.
Norrie apresenta-se no court central com creme protetor barrado pelas bochechas e nariz, cuidado que lhe denuncia as origens apesar de jogar pela bandeira do Reino Unido: a cidade de Auckland, onde cresceu, é a capital do segundo país com mais casos de cancro de pele per capita. Protege-se contra o raro sol de Londres com a sua pancada não usual de direita - tem um preparar mecânico, antecedido por ligeiro salto e ondular dos ombros, como se um par de trampolins fossem o seu calçado - a tentar resguardá-lo na luta contra o que se adivinha ser uma batalha de maratonistas.
Mas Cameron empoleira-se na grandeza, começa o jogo a quebrar o serviço de um estranhamento lento, pesado e inerte Djokovic, a ser um teimoso perpetrador de longas trocas de bola e a insistir que fosse o sérvio a falhar primeiro quando costuma ser ele a vergar outros tenistas pela resistência feita de espargatas, bolas repostas nas linhas e mãos de seda a ajeitar amortis na rede. Não neste arranque, em que Norrie leva o primeiro set por 6-2 e iguala, ou até supera, Djokovic na comparação de correrias.
É divertido de ver o ténis do filho de pai escocês e mãe galesa que nasceu na África do Sul, de onde saiu aos três anos para a Nova Zelândia assim que os progenitores viram uma arma ser encostada à cabeça de um vizinho, com o filho bebé no carro. Intervala momentos de mestria em que encurrala Djokovic a um canto, forçando-o a acorrer à rede para lá o chicotear com volleys, com erros nem um pouco forçados, quando falha os pontos mais feitos, ao avançar esbaforido no campo e bater bolas acessíveis dois palmos para lá das linhas. Mesmo que erróneo e sem um serviço que ganhe pontos sozinho como o de Norrie, o sérvio das tantas dezenas de apertos passados com semelhanças a este levaria o segundo set, por 6-3.
Djokovic pode ser o menos bem-amado da tríplice lendária desta era do ténis, mas o boné com que cobra a cabeça, com a pala à frente, ao voltar do primeiro parcial, serve também para o sombrear da iluminação que o seu adversário não tem e, muito provavelmente, jamais virá a ter. Cameron Norrie tem 26 anos, é o 12.º do ranking e antes deste Wimbledon o seu melhor em majors eram cinco presenças em terceiras rondas. O calo gerado em contextos este, de jogar numa meia-final com o público a fazer-se ruidoso por ele, é nulo, tudo é novidade.
E o terceiro parcial é um degenerar lento e progressivo de um jogador que se tenta manter agarrado aos píncaros do seu ténis.
Novak é um causador deste tipo de agonias a quem compartilhe com ele um court. Como uma picareta em rocha, delapida as valias de outrem à mínima abertura de flanco e cada falha de Norrie em manter o seu jogo em algo próximo da excelência era um degrau subido por Djokovic rumo à aproximação ao seu nível mais habitual. As respostas infalíveis a serviços, os amortis cheios de efeito a sussurrarem na rede. O britânico fartava-se de correr porque a isso era obrigado e o sérvio, no mesmo set em que escorregou embaraçosamente um par de vezes a tentar defender-se de bolas, acabou a ultrapassar qualquer tentativa que Norrie lhe atirasse. 6-2 para sérvio.
Cada bola a ir e vir dos mesmos apeadeiros era uma viagem que os separava mais ainda um do outro. O ajuste de Novak Djokovic às valias com que Cameron Norrie o subjugou no primeiro dos sets era um processo em plena maturação no quarto parcial - da raquete do canhoto saíam já só as bolas possíveis, não conseguia contrariar os jogos de serviço do adversário, que jogava naquela constância robótica de devolver sempre a bola mais difícil do que o estado em que lhe foi chegou. Não era o melhor de Djokovic, mas também não era necessário.
Uma ida simultânea dos tenistas às beiças da rede fazia o ponto tombar para o lado do sérvio, a regra já era quase esta. O mais novo e inexperiente dos semifinalistas ainda conseguia pontos vistosos, os ases reapareceram, Novak ainda sprintava, por vezes, como um homem em apuros, mas essas ocasiões eram singulares e não parte de uma série de grandes pontos. O britânico tinha noção disso: ao fazer o 2-3 e aguentar um jogo de serviço nas vantagens, celebrou o feito como se tivesse prestes a ganhar o encontro.
As distâncias entre um e outro reduzir-se-iam mais um pouco, algumas outras rajadas de bonança soprariam a favor de Cameron Norrie, mas a meia-final foi arrebatada pela lenda de boné ao fim de 2h34, com um 6-4 no derradeiro set. Novak Djokovic jogará a sua oitava decisão de Wimbledon e a 32.ª da carreira num Grand Slam, mais um recorde que agora lhe pertence nestes melancólicos tempos que já temos de mastigar, porque para cada vez mais breve está o dia em que os joelhos de Federer lhe ganharão, as mazelas de Nadal o chamarão à razão e a disponibilidade física de Djokovic, hoje incomparável à dos seus vizinhos no código postal das lendas, também o abandonará.
Mas, com 35 anos, chega-lhe e sobra-lhe para jogar a final de domingo contra o incandescentemente imprevisível Nick Kyrgios. É mais uma hipótese de se reaproximar de Rafael Nadal no Olimpo de quem colecionada Grand Slams como se fosse conchas apanhadas na praia. Será no domingo, a partir das 14h.
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