Jogar no court principal de um torneio do Grand Slam impressiona. Tem de impressionar. Afinal de contas, por aquele solo passaram as maiores lendas da modalidade, ali se forjaram heróis épicos, naquelas bancadas estão milhares de olhos centrados em duas pessoas que, sozinhas lá em baixo, tentam estar à altura das expectativas.
Mas… E se jogar numa quadra central de um major se tornar, para um tenista, uma zona de conforto, um estado anímico simpático, uma entrada num espaço de segurança e bem-estar, quase como chegar a casa depois de um dia chuvoso e cansativo de inverno e sentar-se na tranquilidade do sofá? Fugir ao medo cénico, à ansiedade, à solidão e abraçar e ser abraçado por energia positiva, por memórias alegres, por doces recantos da memória. Naquela esquina fiz um winner em 2008, neste pedaço de rede ganhei aquele ponto decisivo em 2012, aqui estava eu quando conquistei o match point da final em 2019.
Para Novak Djokvic, a Rod Laver Arena representa este lar espiritual, este chão seguro, tal como para Rafa Nadal será o Philippe-Chatrier em Roland-Garros. Nove vezes triunfador do Open da Austrália, não perde no Happy Slam desde 2018.
No entanto, a relação de amor do sérvio com o major do país dos cangurus — onde é recordista de vitórias e ergueu, em 2008, o seu primeiro torneio do Grand Slam — teve um episódio traumático há uma volta ao sol. Em 2022, Novak Djokovic aterrou na Austrália para começar dias de polémica e controvérsia, nos quais centrou as atenções mediáticas globais. Depois de vários avanços e recuos das autoridades, o balcânico acabou expulso do país e do torneio devido à decisão de não se vacinar contra a covid-19.
O que poderia significar um corte na relação mágica parece ter sido só, na verdade, uma interrupção. É isso que se pode depreender da noite — quase madrugada, já que o duelo terminou passada a meia-noite em Melbourne — de regresso de Djokovic ao Open da Austrália. Com grande apoio das bancadas, expresso por cânticos vários e muitas bandeiras sérvias, e uma exibição muito consistente e até com momentos de face sorridente, Nole impôs-se (6-3, 6-4, 6-0) contra Roberto Carballes Baena, recomeçando a sua história na Rod Laver Arena do ponto onde a havia deixado em 2021: vencendo.
Segundo os censos de 2021, há 94.997 pessoas de ascendência sérvia na Austrália. A meio mundo de distância de Belgrado, Melbourne voltou a ser, desde o primeiro momento, terreno amigável para Djokovic. A entrada em court, com gritos de apoio e o vermelho, o azul e o branco ondulando nas bancadas, dissipou dúvidas quanto ao apoio que Nole terá durante a quinzena em que procurará o 22.º major da carreira.
As rondas inaugurais de um Grand Slam são, para colossos como o sérvio, quase como um contra-relógio. Não parecendo, na maior parte das vezes, estar em causa quem vencerá o duelo, a questão fundamental reside em saber quanto tempo se estará em campo. Reduzir essa quantidade ao menor possível é fundamental para reduzir o desgaste que poderá vir a ser pago mais à frente.
Frente a um antigo n.º 8 júnior e atual 75.º da hierarquia mundial, Djokovic, num 5.º lugar do ranking que reflete as suas ausências de grandes torneios em 2022 devido a não se ter vacinado contra a covid-19 e porque o seu triunfo em Wimbledon não deu pontos ATP, cumpriu o objetivo de encurtar o embate. O espanhol deu uma boa resposta nas duas partidas iniciais, mas as duas horas e três minutos de contenda não terão significado desgaste com consequências profundas para o futuro de Nole em Melbourne. Objetivo cumprido.
Djokovic começou o encontro com um ás, como que regressando a Melbourne autoritário e convincente, qual predador que, consciente de que este é o seu território predileto, quer mostrar que quem manda aqui continua a ser ele.
Na primeira manga, Carballes foi o primeiro a dispor de pontos para quebrar o serviço do rival. E logo três de uma vez, no segundo jogo de serviço do sérvio. No entanto, Djokovic salvou-os com classe e qualidade, não mais vendo o seu saque ser verdadeiramente ameaçado.
Depois de fechar o primeiro set com um ás no segundo serviço, ouvia-se no sistema sonoro da Rod Laver Arena o “I like the way you move”. Palavras condizentes com o que se via no court, não só da parte do nove vezes campeão, mas também do espanhol, um digno vencido. Na entrevista após o encontro, Djokovic pediu um “grande aplauso" para a exibição do homem de Tenerife.
Na segunda partida, vencida por 6-4, concluíram-se os últimos pedaços de resistência do menos cotado dos competidores. A 3-3, no jogo de serviço do espanhol que acabaria com o break que daria o parcial ao sérvio, Djokovic venceu um ponto após uma longa troca de bolas. “Olé, Olé, Olé, Noleee, Noleee”. A banda sonora das bancadas glorificava o homem que mais êxitos ali colheu na história.
A última partida, selada com um 6-0, foi uma mera formalidade. Djokovic, que tinha os pais nas bancadas, espera agora rival na segunda ronda, o qual sairá do compromisso entre o francês Enzo Couacaud (191.º do mundo) e o boliviano Hugo Dellien (131.º).
Terminado o duelo, a expressão de Novak misturava confiança com alegria por voltar a sentir-se amado por Melbourne. As bandeiras sérvias esvoaçavam, tal como o haviam feito durante grande parte da noite.
Na entrevista em court, o antigo líder do ranking agradeceu ao público por lhe ter dado “uma receção tão calorosa” com a qual ele tinha “sonhado”. Manifestando-se “feliz” por voltar ao “court mais especial da carreira”, o sérvio terminou com uma frase não surpreendente: “Se tivesse de escolher um court e umas condições para jogar, em qualquer parte do mundo, seria uma sessão noturna na Rod Laver Arena”.
O regresso de Djokovic à sua casa espiritual de Melbourne foi, acima de tudo, uma continuidade, como se os episódios de 2022 tivessem sido uma mera pausa. A Rod Laver Arena deu-lhe o calor do costume e ele respondeu com a vitória habitual.
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