Hoje, Medvedev vai voltar a odiar a terra batida: n.º 2 mundial eliminado de Roland-Garros pelo n.º 172 do ranking, Thiago Seyboth Wild
ANNE-CHRISTINE POUJOULAT
Russo foi protagonista da maior surpresa até agora em Roland-Garros, ao cair na 1.ª ronda frente ao tenista brasileiro, dias após vencer o Masters 1.000 de Roma, também no pó de tijolo que parecia estar a começar a respeitar. Seyboth Wild, vindo da fase de qualificação, tem aqui a oportunidade de confirmar o que dele se esperava em jovem e que nunca conseguiu cumprir na transição de júnior para profissional
Há pouco mais de uma semana, o pó de tijolo transformou-se numa espécie de pó celestial para Daniil Medvedev. O russo, que em tempos tinha feito juras de ódio eterno à terra batida, onde o seu jogo desconcertante parecia não se encaixar, batia Holger Rune na final do Masters 1.000 de Roma, um dos torneios mais importantes do calendário nesta superfície. No final, Medvedev parecia disposto até a abraçar o início de uma bela amizade com a terra batida, pelo menos um respeito mútuo redescoberto, agora que, finalmente, figurava no seu palmarés um torneio na terra deslizante, ainda que sempre com reservas.
“Amizade sim, mas não amo terra batida. Eu gosto é de piso rápido”, deixou claro o moscovita em Roma, ele que automaticamente passou a ser olhado como um dos favoritos a Roland-Garros, mais ainda após um sorteio que o colocou numa metade do quadro aparentemente mais liberta de duelos complicados até à final.
Mas talvez tivesse razão Medvedev na parcimónia que escolheu ter para dar o definitivo abraço à terra batida. Porque foi nela que o jogador com mais vitórias e mais torneios conquistados em 2023 (já cinco, incluindo dois Masters) terá vivido uma das maiores desilusões do ano, ao cair eliminado logo na 1.ª ronda do Grand Slam francês frente ao brasileiro Thiago Seyboth Wild, n.º 172 do ranking, num vibrante encontro de cinco sets, com o paranaense a vencer com parciais de 7-6(5), 6-7(6), 2-6, 6-3 e 6-4, em quatro horas e 15 minutos de ação.
O brasileiro de 23 anos, grande esperança em júnior mas cuja passagem para o ténis profissional tem sido difícil, entrou ao ataque logo no arranque, a fazer Medvedev correr, a procurar ângulos, a martirizar o russo com a sua potente direita. Com um jogo de pés bailarino e capacidade para atrair adversários à rede com o seu amortie, Seyboth Wild tornou o jogo num inferno para Medvedev, frustrado também pela falta de apoio vindo das bancadas - por esta altura, o número dois mundial já devia saber que o público adora uma boa história de underdog e ténis de ataque.
ANNE-CHRISTINE POUJOULAT
Depois de vencer o primeiro set no tie-break, o brasileiro, apenas pela segunda vez num quadro principal de um torneio do Grand Slam, voltou a ser o melhor jogador no 2.º set, perdendo-o após algumas falhas de atenção de novo no tie-break. No final, confessaria que começou a “sofrer câimbras” ainda durante o segundo parcial. Medvedev aproveitaria os visíveis problemas físicos de Seyboth Wild para se colocar na frente, com um concludente 6-2 no terceiro set mas, sem que nada o fizesse prever, o jogador que chegou a ser campeão júnior no US Open de 2018 renasceu para o jogo, voltando aos níveis dos dois primeiros sets no quarto set.
O quinto set foi uma batalha intercalada de erros e pontos espectaculares, falhas incompreensíveis e bolas impossíveis. Aos breaks sucederam-se os contra-breaks e seria mesmo Seyboth Wild a colocar os pés no chão e agarrar os seus jogos de serviço, essencial para fechar o encontro e, ao terceiro dia, escrever com passos de samba a maior surpresa desta 1.ª ronda em Roland-Garros.
Medvedev, no seu estilo tão gracioso quanto desconcertante, abandonou o court principal de Roland-Garros sem sequer se despedir do público. Esta terça-feira, o seu ódio profundo à terra batida poderá muito bem ter voltado.
O renascimento de Wild?
O amarelo, verde e azul combina bem com as bancadas de Paris, onde o ténis brasileiro viveu as suas páginas de maior glória, com um tal de Gustavo Kuerten, vencedor no pó de tijolo francês em 1997 (quando nem sequer era um dos pré-designados), 2000 e 2001. Seyboth Wild foi também levado ao colo por este entusiasmo, ainda que na memória de quem acompanhou a sua carreira nos últimos anos a imagem não possa ser mais distinta da que sempre acompanhou o bem disposto Guga, que Thiago conheceu quando tinha apenas seis anos e que desde então é uma espécie de mentor do jovem brasileiro.
Conhecido por ser um tenista altamente temperamental - foi em 2021 investigado por violência doméstica, acusações que sempre negou - Seyboth Wild sublinhou já este ano que trabalhou muito a parte física e mental com a sua equipa, o que parece estar a dar frutos. “Usei a minha capacidade mental. Funcionou e estou muito feliz com a forma como joguei”, sublinhou no final do encontro.
Em 2020, com 20 anos acabados de fazer, Seyboth Wild bateu Casper Ruud na final do Chile Open, no seu primeiro título ATP. Mas a partir daí a carreira não explodiu. Nas últimas temporadas, jogou essencialmente no Challenger Tour, pintalgando com algumas presenças em torneios ATP disputados na América do Sul.
Chegado a Roland-Garros como qualifier, a vitória frente a Daniil Medvedev, com um ténis espectacular, pode ser um virar de página para o miúdo em tempos visto como a next big thing do ténis brasileiro. O discurso parece, à partida, indicar que está focado nisso mesmo. “O ténis é assim mesmo: estás no court, trabalhas muito e tens a recompensa”, comentou ainda em campo. Na próxima ronda, terá pela frente o vencedor do duelo entre Quentin Halys e Guido Pela.