“Roger Federer, campeão de Wimbledon, é melhor habituares-te a isto”. Há 20 anos, o mago suíço conquistava o seu primeiro Grand Slam
Mike Egerton - EMPICS
A 6 de julho de 2003, Roger Federer batia o australiano Mark Philippoussis na final de Wimbledon, naquele que seria o primeiro de oito títulos em Londres e de 20 em torneios major. O artista que ali naquele domingo juntou o “poder com subtileza” e a “delicadeza com força” mudou a história do ténis naquelas duas semanas
Quando um envergonhado miúdo suíço subiu à Royal Box do Centre Court de Wimbledon logo após vencer o torneio de juniores de 1998, Bill Threlfall, que comentava o torneio para a BBC, lançou uma frase profética: “Vamos voltar a vê-lo”.
Dois anos depois, Roger Federer batia o seu ídolo Pete Sampras na 4.ª ronda do quadro principal, num daqueles clássicos em que a expressão “passagem de testemunho” cola bem. E mais um par de anos volvidos, uma espécie de determinação divina tornar-se-ia realidade: o helvético, mágico de raquete na mão, vencia ali o seu primeiro torneio do Grand Slam.
Foi em Wimbledon, a 6 de julho de 2003, há precisamente 20 anos.
Olhando para aquele rapaz de 21 anos de cabelo comprido e roupas largas e para o homem que ainda há dias, impecavelmente vestido com um fato creme e camisa às riscas, recebeu uma ovação de pé durante dois minutos no court central de Wimbledon, não passaram apenas 20 anos. Passaram-se recordes, feitos, história do ténis em si mesma. A beleza levada a um qualquer extremo num court de ténis. Depois desse título, Federer venceria mais sete em Wimbledon (em 2004, 2005, 2006, 2007, 2009, 2012 e 2017) e foi o primeiro tenista a chegar à vintena de troféus em torneios do Grand Slam. Ainda é o recordista no major londrino, com oito títulos, número que Novak Djokovic poderá igualar já este ano.
Clive Brunskill
Por esses dias, o ténis era diferente. Não havia big three ou big four, as linhas eram bem definidas, havia especialistas em relva, piso rápido, terra batida. Roger Federer também era um tenista diferente, versão melhorada dos servidores-voleadores que tanto sucesso tinham na relva britânica. A final de 2003, em que suíço bateu Mark Philippoussis, dono de um poderoso serviço, em sets diretos (7-6, 6-2 e 7-6), pode muito bem ter sido o último espécime relevante do serviço-vólei numa grande final. A partir daí, e à medida em que Federer moldou o seu ténis para ser competitivo em todas as superfícies, o serviço-vólei tornou-se numa espécie de fóssil tenístico - até o britânico Tim Henman, um dos últimos dos moicanos, chegaria a uma meia-final de Roland-Garros.
A final, há 20 anos, não seria na verdade o melhor aperitivo daquele processo de nascimento de uma estrela em curso. Nesse 2003, os olhos estavam postos no duelo entre dois jovens promissores: o suíço e Andy Roddick, norte-americano de serviço martelo e pancadas impetuosas. Com a eliminação do campeão em título Lleyton Hewitt na 1.ª ronda e de Andre Agassi na 4.ª, a meia-final entre os miúdos passou a ser o espectáculo que todos queriam ver em Londres. Talvez tenha chegado aí a verdadeira revelação de Roger Federer. Na transmissão norte-americana, Mary Carillo, companheira de John McEnroe nas lides do comentarismo na NBC, olhava para o acervo de pancadas do rapaz de Basileia, para a forma como se movia, leve e pairante, ao contrário da passada pesada de Roddick, com a emoção da primeira vez. À medida que Federer respondia com passing shots ou contra-pés ou vóleis mortíferos às bombas de Roddick, os suspiros subiam de tom. “É do melhor ténis que alguma vez vi”, atirou por fim Carillo, conformada com a impossibilidade do seu compatriota Roddick lutar contra tamanho talento.
Federer venceria esse encontro em três sets como venceu quase todos os encontros na caminhada até ao título. Mardy Fish, na terceira ronda, foi o único a roubar-lhe um set. Dias depois, aguentaria horríveis dores de costas para eliminar Feliciano López na 4.ª ronda. Na final, frente a um Philippoussis renascido após graves lesões, sentiu enormes dificuldades em quebrar o serviço ao aussie, que tinha no saque uma pancada sublime. A primeira quebra de serviço aconteceria apenas no arranque do 2.º set e o terceiro resolveu-se no tie-break, tal como o primeiro. Sabendo do ponto forte do adversário, Federer afinou o seu próprio serviço: não concedeu sequer um ponto de break a Philippoussis. Quando o australiano estatelou a resposta na rede ao terceiro match point de Federer, o suíço desabou de joelhos na relva de Wimbledon. Seria a primeira de muitas.
O magnetismo e as comparações com Sampras
O “Guardian”, na crónica à vitória nesse 6 de julho de 2003, fala de um atleta “abençoado com um talento extraordinário”, que combina “poder com subtileza, delicadeza com força”. No discurso de campeão, um tímido Roger Federer parece não compreender o que raio se passou consigo, fala, com a voz a falhar, de como em criança via na TV e sonhava com aquele momento. “Roger Federer, campeão de Wimbledon, é melhor habituares-te a isto”, diz a anfitriã, mal sabendo a quantidade recordística de vezes que aquele momento se iria repetir. Federer, que em jovem trabalhou o seu feitio algo torcido - era habitual vê-lo a esborrachar raquetes no chão na adolescência - para se tornar numa espécie de gentleman perfeito, desabou em lágrimas no momento em que olhou para os adeptos suíços nas bancadas do Centre Court. Naqueles tempos, homens com água nos olhos era coisa menos vista em locais públicos do que hoje.
Mike Hewitt
“Porque deveria ser isto surpreendente? Federer tem o toque de artista num court de ténis: é feito para a terra batida francesa, para a borracha australiana, para o cimento norte-americano e para a relva inglesa. Porque não haveria ele ter uma alma sensível também?”. A questão é colocada por Christopher Clarey no “New York Times” após a final. O jornalista norte-americano, anos depois, estaria a escrever a biografia daquele mestre suíço, com muitos mais capítulos do que o dessa tarde em Londres.
Clarey escreveria também há 20 anos sobre o magnetismo do ténis de Federer, uma coisa de outros tempos, um digno sucessor de Pete Sampras, mas com algo mais. “Uma atraente mistura de movimentos suaves e pensamento criativo”, refere. As comparações com o norte-americano eram, então, inevitáveis. O tenista de Washington estava então retirado, embora ninguém o soubesse - confirmaria o adeus semanas depois. Para o helvético, os feitos de Sampras, sete vezes campeão em Wimbledon, 14 vezes campeão em torneios do Grand Slam, pareciam longínquos, intocáveis, para olhar apenas com o merecido respeito. “Só tenho um dos sete que ele tem, estou tão longe dele”, diria então Federer. Em 2017, na sua última vitória em Londres, ultrapassaria finalmente o número de triunfos de Sampras.
“Estou feliz simplesmente por ter o meu nome na lista de vencedores. É tão bom quando olhas para todos os jogadores que ganharam aqui, muitos são ídolos meus. Estar na mesma lista que Borg… é bom ser parte da história de Wimbledon e dos Grand Slams em geral”, atirou também então Federer, longe de saber que a história seria ele e que atrás dele viriam outros dois génios. Um deles, Rafael Nadal, fez nesse Wimbledon de 2003 a sua estreia em quadros principais de torneios major, com 16 anos. Chegaria à terceira ronda.
Cinco anos depois, o dia 6 de julho entraria novamente na história do torneio: depois de duas tentativas falhadas, Rafael Nadal conseguiria finalmente bater Roger Federer na final do All England Club, num encontro que é unanimemente considerado como um dos melhores da história do ténis. Nadal entrou a ganhar os dois primeiros sets, antes de uma primeira paragem devido à chuva. O suíço recuperaria no terceiro e quarto sets, houve nova interrupção pela chuva pelo meio e o derradeiro parcial jogou-se até aos 9-7, já ameaçado pela falta de luz natural. Foram 4 horas e 48 minutos de jogo mas mais de sete horas entre o primeiro ponto e o match point decisivo.