Ténis

Marketa Vondrousova, a nova campeã de Wimbledon, roubou a felicidade à ministra do ténis

Marketa Vondrousova, a nova campeã de Wimbledon, roubou a felicidade à ministra do ténis
Clive Brunskill/Getty

Há um ano, Marketa Vondrousova andava a passear em Wimbledon que nem uma turista, com um gesso a tapar-lhe o pulso e, quando esta temporada de relva arrancou, só tinha duas vitórias na superfície. Aos 24 anos, ganhou o seu primeiro Grand Slam ao derrotar (6-4, 6-4) a favorita Ons Jabeur, conhecida como ‘a ministra da felicidade’, que ruiu sobre ela própria e mostrou como é a cabeça que segura na raquete

Ter uma fotografia do troféu do Grand Slam que se pretende ganhar no telemóvel, escarrapachada no papel de parede do ecrã, a boa-vindar cada ida ao instrumento que suga tanta atenção, pode ser bom truque psicológico para uma jogadora se manter focada no destino. Ou não, a psicologia saberá debatê-lo. O ano passado e durante sabe-se lá quanto tempo, Ons Jabeur tinha o de Wimbledon a luzir a cada dia, cada hora e cada desbloqueio do smartphone, lembrando-a do que perseguia, uma recordação do fim ali especada em qualquer altura da viagem, quiçá a desviar-lhe a cabeça precisamente do metódico processo que perfaz a vida de cada tenista.

Desfrutando ou não da aventura, quando chegou à final de 2022 em Londres, a tunisina perdeu. Desde então que nenhuma mulher acabou mais jogos na relva a sorrir, o gesto predileto da simpática Ons, a afável prestadora de boa-disposição para qualquer pessoa que a interpele, conhecida no circuito pela felicidade que irradia. Um ano contado desde a desilusão, a primeira mulher árabe a alcançar a final de um major revisitou o court central de Wimbledon com a sua elegante renega à força e um ténis depositado na arte, na leveza da raquete, no cetim a bater bolas.

O primeiro set arrancou com Jabeur a explanar o seu cardápio de esquerdas cortadas, amortis escondidos até à última e pancadas-surpresa, batidas cedo quando a bola ainda sobe após ressaltar. Indo à rede amiúde como gosta, a tunisina cedo pareceu ter um ascendente sobre Marketa Vondrousova, a checa que devolveu uma tenista não cabeça de série à final de Wimbledon uns 60 anos depois. Nunca em potência, sempre priorizando a colocação de bola, Jabeur quebrou-lhe o serviço à primeira oportunidade e repetiu-o mesmo quando a adversária canhota devolveu o break logo no jogo seguinte. Quando era encostada, a tunisina regressava ao seu melhor.

Essa aptidão durou cerca de meia hora, não mais.

Quando Vondrousova, pincelada de tatuagens nos braços, quebrou o saque da tunisina pela segunda vez, Jabeur ruiu sobre si própria. Não era preciso dar repetidas palmadas na sua coxa, como fez ao primeiro erro não forçado que cometeu na final, para lhe ser diagnosticada uma falência mental que prendia a fina técnica que se lhe reconhece. Enquanto Marketa se encavalitou no seu potente serviço e esticou mais as suas bolas para caírem mais ao fundo do campo, Ons fundia-se à relva com raízes: presa de pés, às vezes quase paralisada, atirava bolas fáceis à rede e precipitava-se em querer atacar quando não devia. A fineza da tunisina sumira e a checa levou o set (6-4) ao ganhar 16 dos seus últimos 18 pontos.

O arame farpado que amarrava as mãos de Jabeur estava ligado à sua cabeça, a mente é a mestre de tudo e o primeiro jogo de serviço do parcial seguinte ainda a teve pior, levando o público efusivamente a aplaudi-la a meio do seu enterro em si própria. De nada valeu, Vondrousova quebrou-a de novo a fazer o que vinha fazendo, sendo consistente na devolução de bola arriscada quanto baste, sabendo que a tunisina, no estado em que estava, acabaria por falhar mais cedo do que tarde. Mas, de novo do nada, a sorridente tunisina que pouco já sorria, mudou.

Ons Jabeur encadeou uma fase estável, paciente na procura do volante dos pontos em vez de ir logo à caça de pancadas que os terminassem, cortejava a rede como gosta e até celebrou bolas na vizinhança da rede que terão orgulhado Martina Navratilova, a lendária mestre do volley que assistia da primeira fila do court central de Wimbledon. A tunisina, de 28 anos, fez o 3-1, parando na estação que a arruinou por duas vezes no set anterior. E haveria uma terceira, que Jabeur gesticulou com três dedos na direção do seu treinador quando já barafustava mais um contra-break de Vondrousova, que sabendo do passado foi rápida a ser mais agressiva nessa barreira mental da tunisina.

Jabeur não conseguia ganhar um jogo de serviço após roubar o da checa. Isso consumia-a, sugava a alegria que dá as feições faciais. Houvesse um buraco na relva e a tunisina enterrava-se.

A sua ruína prolongou-se enquanto Marketa Vondrousova era um expoente de estabilidade, devolvendo bolas consistentemente para os pés da adversária, que mal se mexiam. Bastava-lhe isso, ser constante no plano de jogo, não se desviando do que lhe estava a resultar e mantendo o desconforto que asfixiava Ons Jabeur nos seus bicharocos mentais. Quando a checa, de 24 anos, voltou a impor-se no serviço da tunisina, embalou-se para a vitória que ainda solavanco numa dupla falta ao primeiro championship point - porque é a cabeça e a massa cinzenta e são os neurónios que nos fazem pensar que pegam na raquete.

Vondrousova deixou-se cair na relva, varrida pela alegria que costuma ser associada a Jabeur, a conhecia ‘ministra da felicidade’ do ténis. Há um ano, Marketa andava em Wimbledon a ser uma turista, com um braço envolto em gesso devido a uma operação ao pulso. Nem há um mês, quando o circuito se virou para a relva, tinha só duas vitórias nesta superfície e andou as últimas duas semanas a pedir ao marido que arranjasse um cat sitter em Praga para tratar do amigo felino que têm em casa durante a ausência a que ela os estava a obrigar.

A aventura da checa foi-se prolongando até ser a tenista com pior ranking (42.ª do mundo) a conquistar Wimbledon. “É incrível estar aqui agora”, disse, sucinta, no discurso da vitória do apenas segundo título que conquista na carreira atormentada por lesões (o outro destaque é Tóquio, onde foi medalha de prata no torneio olímpico).

Antes falara Ons Jabeur, a “inspiração para todas nós” nas palavras de Vondrousova. Destroçada e com as lágrimas a transbordarem dos olhos ao fim da primeira frase, a tunisina teve “medo de falar” por ser “muito, muito duro” aconchegar-se perto do microfone após a perder a terceira final de um Grand Slam na carreira. “É a derrota mais dolorosa da minha carreira. Não vou desistir e regressarei mais forte, prometo voltar aqui um dia”, garantiu a mulher que mais carinho terá, neste momento, nas preferências do público de Wimbledon.

E já regressada ao seu banco, sentada e a ver Marketa Vondrousova a passear-se na relva com o seu prato de vencedora, Jabeur foi ao telemóvel, olhou para ele e virou-o do avesso. Talvez a imagem ainda lá esteja, ainda à espera dela.

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