Afinal, Alcaraz tem mesmo “o melhor dos três mundos”. Quem o diz é Djokovic
SEBASTIEN BOZON
O debate sobre a fisicalidade e a fineza do ténis de Carlos Alcaraz tem enchido páginas e bocas desde que o prodígio espanhol apareceu, mais ainda depois da vitória no torneio de Wimbledon. O que parecia uma narrativa fabulosa para descrever as exibições estelares do murciano ganhou agora um derradeiro apologista. Djokovic, um dos senhorios dos tais "três mundos", admitiu que é verdade, que Alcaraz mistura coisas dele próprio e de Roger Federer e Rafael Nadal
Os demónios, equipados com uma memória hedionda, morderam o sistema nervoso de Carlos Alcaraz no primeiro set da final de Wimbledon. O adversário, mais vilão do que super-herói, era o mesmo que lhe congelou os músculos em Paris, na semifinal de Roland-Garros. Uma nuvem invisível martelava o prodígio espanhol para debaixo da relva que tanto enobrece o torneio.
Novak Djokovic, senhorio do jogo e das vontades da bola amarela, voltou a enfeitiçar o murciano, anunciando mudamente o cancelamento da maratona expectável por todos os amantes da modalidade. Seria uma mera exibição protocolar? Imitaria o que fez em 2011, 2014, 2015, 2018, 2019, 2021 e 2022? No, señor.
Alcaraz, número 1 por direito, sobreviveu àquela dolorosa partida inicial por 1-6. Sentou-se na sua cadeira, refrescou as entranhas e disse para ele que aquilo era uma final e que as pessoas mereciam mais dele. E voltou com outra disposição, com menos respeitinho ao semideus sérvio que lhe colocaram à frente mais uma vez. O nível subiu. O arrojo do miúdo-maravilha, idem. E um tiebreak deixou tudo empatado. A seguir, com o braço solto e os pés rápidos, quase como um pugilista numa piscina de gelo, Alcaraz passou por cima do lendário tenista dos balcãs: 6-1.
Djoko, austero guerreiro que não negocia tréguas, voltou ao ringue verde onde as borboletas não atrapalham assim tanto, ofereceu luta, venceu o quarto set por 6-3 e deixou tudo para a negra, o derradeiro quinto set. Aí, Alcaraz tratou de cumprir os desejos do menino Carlos de 12 anos, que apenas precisava de umas batatas e de uma raquete para deixar-se invadir pela tenra felicidade. Ah, e que suspirava por triunfos nos torneios de Wimbledon e Roland-Garros. Quase cinco horas depois, Carlitos, de 20 anos, meteu a bola onde tinha de meter e confirmou o 6-4, fechando o encontro, maravilhando os seus admiradores e também, porque não?, os de Rafael Nadal e Roger Federer, que preferem não ver Djokovic a afastar-se demasiado como tenista com mais vitórias em torneios do Grand Slam.
Poucos segundos depois do match point e ainda no mítico relvado, o número 2 do ranking ATP demonstrou ser um desportista admirável, mesmo num momento tão difícil (e esquecendo o ato de loucura em que partiu a raquete contra a rede). Tocou as teclas certas, escolheu as palavras adequadas. Perdeu com uma dignidade inatacável. Também ele ganhara ali jogos que podia muito bem ter perdido, admitiu, sublinhando um muito específico com Federer, de 2019. As margens e as pancadas vivem de distâncias mínimas.
O discurso de Carlos Alcaraz, com a dourada taça nas mãos, foi também especial, todo ele cheio de respeitos e encantos por Novak Djokovic. Pelo meio, sem qualquer pingo de maldade, disse que cresceu a vê-lo e que quando nasceu já o sérvio conquistava torneios. O público riu, nadinha inocentemente. Felizmente, o gracioso rapaz de Múrcia, com menos 16 anos do que o rival, não se atrapalhou.
Visionhaus
O ténis de Carlos Alcaraz tem sido analisado com uma dedicação rigorosa. Ao seu jogo cheio de fisicalidade juntam-se detalhes e pormenores técnicos, nomeadamente os recorrentes amortis, que o transformam num tenista completo. Há sempre quem diga, em conversas de café ou de redação, que o espanhol tem coisas dos três génios que encheram os livros do ténis nas últimas duas décadas. Finalmente, alguém autorizado para tal, confirmou-o.
“Não esperava que ele jogasse tão bem na relva, esta ano”, desabafou Djokovic, na conferência de imprensa depois da final do torneio londrino. “Mas ele provou que é o melhor do mundo. Nunca joguei com um tenista como ele, para ser honesto. Acho que as pessoas têm falado, nos últimos 12 meses ou assim, sobre o seu jogo consistentemente ter elementos de Roger, Rafa e de mim próprio. Eu concordaria com isso.”
A declaração é de um valor incalculável. Mas não se ficou por aí. “Basicamente, ele tem o melhor dos três mundos. Ele tem a mentalidade de touro espanhol, o espírito lutador e a incrível defesa que vimos com o Rafa. Acho que ele tem algumas belas esquerdas a deslizar [no court], têm algumas similitudes com as minhas esquerdas. É um jogador completo.” Depois de perder com graciosidade, um elogio imenso. Talvez estas últimas horas debaixo do sol de Londres lhe permitam ganhar mais alguma simpatia que o seu ténis convoca.
Com um chapéu redondo e um sorriso de orelha a orelha, também Alcaraz se sentou na mesma sala e comentou as palavras de Djokovic. “É uma loucura que Novak tenha dito aquilo, honestamente”, confessou o campeão de Wimbledon. “Mas eu considero-me realmente um jogador completo. Acho que tenho as pancadas, a força física, a força mental. Não sei…”, refletiu.
E, preenchido da honestidade que distingue os jovens, continuou: “Ele está provavelmente certo, mas não quero pensar sobre isso. Eu vou pensar que sou o Carlos Alcaraz na totalidade, digamos assim, mas provavelmente tenho algumas grandes habilidades de cada jogador”.
Quem acompanhou esta partida de domingo sentiu certamente aquele friozinho no estômago de quem está a testemunhar história, tal como todos sentimos lá atrás quando Federer, Nadal e Djokovic tomavam conta da modalidade. Agora a cantiga é outra, igualmente especial, talvez não tanto se não aparecerem outros Carlos. Para já, o futuro do ténis parece pertencer a este humilde ladrão de ideias.