O estádio Arthur Ashe em Queens, Nova Iorque, o maior do mundo do ténis, não é só sobre aqueles camarotes luxuosos, salpicados com sorrisos perfeitos e despreocupados e bebidas com cores vivas, não é só sobre as celebridades e os desportistas de alto gabarito que ali se sentam para testemunharem história a cada pancada, não é só sobre bilhetes com preços proibitivos ou o simples e singelo amor ao ténis.
O estádio Arthur Ashe não é só sobre as inevitabilidades da lenda em movimento Novak Djokovic, sobre correrias potentes e imaginativas de Carlos Alcaraz e a perfeição pontual de Daniil Medvedev, o estádio Arthur Ashe não é só sobre recuperações alucinantes como a de Aryna Sabalenka ou sobre os contos de fadas como o de Coco Gauff. O estádio Arthur Ashe não é só sobre as finais do US Open ou partidas que pertencem à misticidade desta modalidade. O estádio Arthur Ashe é também sobre Arthur Ashe, um tenista esdrúxulo e alguém que carregou na garganta as dores dos outros.
Há exatamente 55 anos, um jovem tenente do exército norte-americano pediu uma licença para poder participar no Open dos Estados Unidos. Era um tenista amador, o quinto cabeça de série. A era Open começara há apenas quatro meses, por isso ainda entravam na competição aqueles que não faziam do desporto e daquela modalidade o ganha-pão. Um conjunto improbabilidades foi acontecendo e Ashe chegou à final. Tom Okker, um holandês, foi o derradeiro obstáculo que separou o militar de um enorme feito, que se transformou assim no primeiro afro-americano a conquistar um major. Por ser amador, o prémio de campeão, com um valor a rondar os 14 mil dólares, aterrou na conta bancária de Okker, o rival.
Aquele triunfo histórico misturou-se com um evento que cambiaria também a sua vida. Sete meses antes, contam as páginas do “The New York Times”, Martin Luther King enviou a Ashe uma carta, instando o prometedor tenista a usar a sua voz para combater as injustiças da sociedade. Afinal, a grandeza no desporto conferia ou adicionava na vida de Ashe “autoridade” e "responsabilidade”. E assim, campeão no court – “agora sou um campeão e as pessoas vão ouvir-me” –, Arthur Ashe tornou-se também num campeão das pessoas e dos direitos civis, ainda que nem sempre tenha vivido bem com a engorda da fama.
Luther King foi assassinado no início de 1968, o ano em que Ashe triunfou no US Open, um episódio que transtornou o tenista que também venceria o Open da Austrália e o torneio de Wimbledon, em 1970 e 1975, tratando-se do único negro a juntar os três troféus. E isso, as palavras e o destino de King –, inspirou-o para a luta e para proferir frases como: “Com o que recebemos, podemos ganhar a vida. O que damos, no entanto, faz uma vida”.
Também lhe foram recusados vistos para entrar na África do Sul, então castigada e desanimada pelo apartheid, para jogar ténis. A vida não lhe foi facilitada mesmo sendo o número 1 dos Estados Unidos. Esse jeito de segregar, de negar ou inferiorizar, já Arthur Ashe havia vivido na infância e juventude, ao crescer no Sul do país, vincadamente racista e com regras que diferenciavam pela cor da pele.
Também na justiça do jogo que o apaixonava deixou o seu grão de areia, ao contribuir para a criação da Association of Tennis Professionals (ATP), em 1972, que visava defender e representar os interesses dos tenistas, que ganharam mais poder no circuito. Em 1974, Arthur Ashe foi eleito presidente da entidade.
O destino deste homem singular foi, no entanto, trucidado, primeiro por um ataque cardíaco, em 1979, que o afastou do ténis um ano depois, e depois por um diagnóstico de HIV, contraído depois de uma transfusão de sangue. O tenista morreu em fevereiro de 1993, aos 49 anos, na sequência de uma pneumonia. “Foi um dos melhores homens da sua geração”, declarou Magic Johnson, o basquetebolistas que também estava infetado com o vírus HIV.
Distinguido com a Medalha Presidencial da Liberdade por Bill Clinton após a morte do ativista e tenista, Arthur Ashe, nascido em Richmond em 1943, não deixou este mundo sem ser vocal na luta contra a SIDA e também sem ser detido num protesto contra a forma como o governo do seu país tratava os refugiados haitianos. Admirável o percurso deste homem, que dentro de court somou 818 vitórias e 51 títulos.
O nome de Arthur Ashe será repetido muitíssimas vezes, mas nunca demasiadas, este fim de semana quando Sabalenka e Gauff discutirem a final de singles femininos (21h30, Eurosport). E amanhã, no também prometedor Djokovic-Medvedev (21h30, Eurosport). E ele, que lutou incansavelmente pela justiça neste redondo mundo que tanto vende esperanças como angústias, torna-se ele mesmo num objeto precioso e dourado de justiça.
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