Ténis

Quase como se nada fosse, Rafael Nadal voltou. E o touro regressou à loja de porcelana

Quase como se nada fosse, Rafael Nadal voltou. E o touro regressou à loja de porcelana
JONO SEARLE

Quem diria que foram 349 dias sem competir. Na Austrália, mesmo país onde jogara pela última vez antes da lesão, o espanhol, de 37 anos, ganhou a Dominic Thiem (7-5, 6-1) com a sua velha potência avassaladora nas pancadas e um serviço com precisão surpreendente. Feliz só por ter sido capaz de regressar, Nadal nem se apercebeu que a vitória lhe deu para ultrapassar Ivan Lendl como o quarto tenista da história com mais jogos ganhos no ténis

Abeira-se da linha de fundo e dá pequenos saltos em bicos de pés antes de a atravessar, como que hesitante e prestes a cometer um sacrilégio. Pede três bolas para servir, fita-as concentrado, escolhe uma, guarda a outra, descarta a restante e encadeia o que lhe é inevitável: puxa ligeiramente os calções junto ao rabo, ajeita a t-shirt em cada ombro, leva a mesma mão ao nariz antes de às orelhas e depois de novo à sua penca para acabar a limpar o suor da cara com a proteção de pulso. A conhecida série de gestos obsessivos de Rafael Nadal são a compulsão mais vista no ténis, provavelmente repetida pelo espanhol nos 1.285 jogos feitos na carreira e por ele saudosamente revisitada em Brisbane, na Austrália.

Não lhe víamos os tiques há 349 dias, tanto tempo para quem já tem tão pouco, a última vez foi na mesma ilha-continente e a coincidência geográfica deu ao regresso um ar de ciclo a fazer as pazes com a sua trama. Há quase um ano, o espanhol saíra do Open da Austrália a contorcer-se de dores por uma lesão na anca que fez quem gosta de ténis entristecer-se ao ver uma lenda escancarar o coração, em público, ao dizer que iria submeter-se a uma operação para tentar voltar a jogar porque achava que não merecia terminar assim, devido a uma traição suprema do corpo. Aos 37 anos ele voltou, presente de ano novo para os carinhosos da bola amarela.

Com o seu ar sério e olhar fechado, Nadal regressou embalado, a transladar a raiva para a raquete com um jogo em branco no seu serviço contra outro azarado das lesões, também a caminhar na sua própria penitência no caminho de regresso a ele próprio. Dominic Thiem era top-3 do mundo e um unânime eventual sucessor do espanhol na terra batida até uma mazela no pulso o tirar durante quase dois anos dos courts, causando-lhe fissuras mentais que tenta curar desde 2022. Na raquete de ambos joga o peso do que cada um outrora foi, as suas carreiras são incomparáveis se bem que é justa uma equivalência entre dois tenistas a travarem a mesma luta.

O primeiro set igualou-os até ao desfecho, predispondo o bem-disposto público australiano a gritar frases motivacionais entre pontos. A óbvia maior fatia de curiosidade caía do lado de Rafael Nadal, que fez por esmorecer as expectativas nos dias prévios. Disse que nem se deixa imaginar em ganhar torneios agora e que só pensa em desfrutar apesar de quem com ele treinou, em semanas recentes, lhe gabar as coisas que mostrou em Brisbane: com a sua portentosa direita calibrada como se nada tivesse acontecido, o espanhol foi um manancial de pancadas aceleradas a preceito, cheio do seu top-spin inigualável que massacrou Thiem com bolas caídos nos cantos do campo e postas a rolar a enormes velocidades sem aparente esforço.

A brutidão no ténis de Nadal estava lá, na direita e na esquerda, o serviço era incrivelmente preciso na colocação - no ponto seguinte a Thiem atirar-lhe, sem intenção, uma bola contra o corpo, o espanhol sacou um ás cheio de jeito e dispensador de força segundos depois - e as subidas à rede mostravam que o toque na raquete do tenista de Manacor a quem sempre apelidaram de touro não partiria uma peça se lhe pedissem para dançar numa loja a abarrotar de porcelanas até ao teto.

O 7-5 para Rafael Nadal no primeiro set, cedendo somente três pontos no seu serviço, não foram só maravilhas. O espanhol exibiu uma natural ferrugem nos movimentos, lento a reagir a bolas que lhe exploravam o contra pé ou a resistir a pontos mais longos quando Thiem o obrigava a correr de uma margem à outra do fundo do court. Foi resistindo no seu serviço, viram-se umas quantas pancadas triunfantes vindos da sua bonita esquerda a uma mão, mas, perdendo o parcial de arranque, o austríaco mirrou à sua versão errático desde o regresso da lesão no pulso.

Vendo como se desmoronava nele próprio, obrigado a arriscar e a falhar em catadupa, o espanhol massacrou insistentemente a esquerda de Thiem, letal a farejar o odor da incerteza no ar e a canalizar as suas valias contra as fraquezas detetadas do lado oposto da rede. Este novo Nadal teve muito do velho Nadal, o impressionante não era exibir o que já tanto vimos, mas o facto de ter ser capaz de o mostrar logo à primeira vez que joga em 349 dias. A impiedosa e, sobretudo, constante velocidade de bola que martelou contra o adversário frustrou ainda mais o austríaco, que foi barafustando para o ar ao longo do segundo set.

A similitude de circunstâncias que os uniu, ao início, não podia divergir mais no court, quando o jogo se precipitava para o fim. Hesitando ao caminhar sobre as linhas entre pontos, querendo cruzá-las com o pé certo, indo ao banco ajeitar as garrafas de água no chão com a sua obsessiva minúcia cirúrgica, Nadal nem teve de jogar tão bem para fechar o encontro com um 6-1 dominador. Festejou-o como se fosse um título conquistado, porque a teoria assim o tinha: praticamente um ano volvido, ganhava, até ver, ao próprio corpo, erguendo os braços e cavando as rugas na cara enquanto olhava para o céu.

Nem ele sabe quanto mais isto vai durar. Foi tanto tempo de inatividade que não conseguiu aferir o nível a que esteve, disse, com modéstia, ao discursar no final do jogo. Vendo de fora, quem diria que a última vez fora há quase um ano. “Tive saudades de estar saudável, sentir-me competitivo e jogar diante de grandes multidões como esta, de me sentir apoiado (...) Estava nervoso antes do jogo e tinha dúvidas porque não sabia como iam correr as coisas depois. E agora estou simplesmente feliz por poder voltar a jogar amanhã.” As lendas não são imunes aos clichés e o atual de Rafael Nadal é pensar - e desfrutar - um dia de cada vez.

O espanhol, afundado no 672.º lugar na hierarquia mundial, mas a gozar de ranking protegido face à lesão que lhe permitirá entrar no quadro principal de nove torneios, está sujeito a enfrentar no vindouro Open da Austrália (começa a 14 de janeiro) os cabeças de série do torneio logo à primeira ronda, pelo que o regresso será necessariamente doloroso em obstáculos tenísticos. Provavelmente, Rafa pouco se importará. Como não pareceu importado, nem sequer ciente, de que esta 1069.ª vitória da carreira frente a Thiem lhe serviu para ultrapassar Ivan Lendl para ser o quarto jogador com mais jogos ganhos na história. “Como podem imaginar, nem me apercebi que havia essa estatística hoje, tinha trabalhado de sobra só para conseguir voltar a jogar um encontro profissional”, confessou. Por esta altura, já ninguém ligará muito números.

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