Ténis

Na Austrália ganhou Jannik Sinner, a 🥕 italiana que não parece ter vindo de Itália

Na Austrália ganhou Jannik Sinner, a 🥕 italiana que não parece ter vindo de Itália
James D. Morgan/Getty
O tenista nascido em Tirol, a meros quilómetros da Áustria, que esteve entre o esqui e o ténis, foi recebido na sua primeira final de um Grand Slam por umas boas-vindas antipáticas de Daniil Medvedev: a jogar como não costuma, atacou com agressividade e levou os dois primeiros sets. Mas, pagando a fatura de um torneio com muitas horas no court, o russo quebrou com a reação do italiano, que se impôs com as suas pancadas-canhão para se estrear neste tipo de conquistas no Open da Austrália

Fazem-nos acreditar, como escritura na pedra, que os povos do sul da Europa têm o sangue à temperatura ambiente, logo quem lá nasce é quente e afável, expressa-se com emoção na guelra e não se coíbem de extravagâncias no trato com quem os rodeia, dizem que isso é ser mediterrânico ou latino, ou por aí fora no encaixotamento feito na redução das pessoas a estereótipos, como diria Jannik Sinner. Ruivo, esquálido e sardento, é um italiano desprovido de convenções italianas, a começar pelo nome, forreta friorento no ato de emanar sensações vindo da região do Tirol e nascido nem a 10 quilómetros da Áustria.

Ainda pensou, em miúdo, dedicar-se ao esqui no qual se divertiu com os pais na pré-época em vez de andar a desenferrujuar-se em torneios de aquecimento, a neve e o gelo estão-lhe na alma inquebrável que evidenciara, em concreta, ao servir bolas na meia-final do Open da Austrália contra o alienígena que melhor responde a esse ato no ténis. E pensámos, em comunhão, que um jogador capaz de vergar Novak Djokovic e não lhe permitir uma única hipótese de quebrar o serviço estava embalado, com as suas feições robóticas, para gelar à sua temperatura o Grand Slam mais quente do circuito. Mas, se o tema é contrariar convenções, era impossível ignorar Daniil Medvedev.

Foi o extrovertido russo que se mete com o público amiúde e ferve em emoções sem filtro a agarrar a final pela gola, encostando o estreante nestas lides ao sopé do court enquanto entrou decidido a não conceder terreno na sua linha de fundo. Agressivo nas pancadas, o por norma calculista e defensivo tenista quis atacar o adversário desde cedo, impondo muito mais velocidade na bola em todos os pontos. Medvedev, o anti-russo, aparecia também contra a sua própria natureza e, ao segundo jogo, teve logo três break points frente ao italiano que não parece italiano e que tinha guardado 75 dos seus anteriores 76 jogos de serviço.

Roubado tão atempadamente do seu bem mais precioso neste torneio, Sinner estremeceu, na sua cara fechada viu-se a dúvida e nos constantes olhares para os seus treinadores o receio de que a inesperada estratégia de Medvedev lhe fugisse do alcance. Em 36 minutos e com outros três pontos de break a fechar, o primeiro set foi para o extrovertido russo (6-3) que neste Open da Austrália teve um dos seus cândidos momentos de microfone na mão, a explicar, em campo e a Jim Courier, antigo tenista que empresta o seu carisma a entrevistar os atuais jogadores, os porquês de se ter habituado a defender serviços uns bons quatro ou mais metros atrás da linha de fundo, uma das marcas de água do seu ténis.

Mas não nesta final. À sua terceira experiência no decisivo jogo em Melbourne (perdeu em 2021 e 2022), Daniil punha agressividade todo o contacto que a bola tinha com a sua raquete, encurtando os pontos e impedindo o adversário de domar a iniciativa nos pontos com as poderosas chicotadas na felpuda amarela que arruinaram Novak Djokovic. O italiano somou 14 erros não forçados no primeiro parcial e no raiar do segundo lá se expressou, timidamente, com um punho cerrado aqui e um singelo grito ali, nuns quantos pontos que arrancou a ganhar. Pareceu ter renovada energia, só que as aparências, como eles o provas ambulantes, não são de confiar.

O moscovita que há muito reside no Mónaco carregou, mais ainda, na agressividade que injetava no jogo, até visitou a rede com mais frequência, ele um mamute desengonçado de 1,98 metros que aprendeu a ser letal com os seus membros de esparguete. Quando fixou um 4-1 no segundo parcial tinha ganhado 100% dos pontos do seu primeiro serviço. Cada pequena bola de ténis levava o peso de uma parente afastada do basquetebol, cada resposta a um saque desequilibrava logo Sinner, qualquer tentativa do italiano em por Medvedev a correr era correspondida com mestria pelo russo com pulso de plasticina, rodopiando-o com jeitos esquisitos, porém eficazes.

Não sendo um polvo que espera atrás do fundo do court, mas atacando com tudo desde início, seria expectável que tal estratégia de o russo jogar como raramente joga viesse rotulada com um “consumir de preferência até…” Com tamanha agressividade que não tardou a suar-lhe a franja capilar e destapar as entradas sobre a testa, notaram-se as primeiras falências em Medvedev quando serviu para tentar fechar o segundo set: Jannik Sinner quebrou-o, cerrou o punho que nele é o equivalente a uma extravagância e o russo acusou um pouco o toque.

Lograria fechá-lo a seu favor, mas com rachas na armadura, porque tremeu quando teve na raquete o saque definitivo e serviu umas quantas bolas quase disparatadas, sintoma de quem tinha a cabeça a ser invadida por pensamentos divergentes dos que o tinham segurado até então. O “stay agressive, mate!” que Darren Cahill, treinador australiano de Sinner, lhe ordenou da bancada, algo fizeram para perturbar Medvedev, mesmo que a acrescida potência chamada para jogo pelo italiano quando farejou sangue não evitasse novo 6-3 para o russo. A roda dentada do tempo poderia estar à espreita.

Afinal, o único entre eles com um Grand Slam no currículo quase mais cinco horas vividas em court neste Open da Austrália, obrigado a gastar-se em epopeias que o poderão ter inclinado para ir na direção contrária ao que é seu apanágio no ténis. Com o corpo dorido e os músculos cansados, Medvedev não abdicou da postura no terceiro parcial. Jamais o vimos a esperar por bolas atrás do “Melbourne” inscrito num dos lados do campo que serviu de referência na tal explicação que dera para a sua existência habitual nas traseiras de um court de ténis, nem quando Sinner, perdido de soluções, optou por carregar sobre a esquerda do russo.

Talvez ponderasse que um ser tão alto e sempre tão agachado para bater cedo na trajetória da bola, após esta ressaltar, de modo a esmurrá-la com maior velocidade, acabasse por fustigar um corpo moldado às alturas, não aos andares de baixo dos gestos técnicos do ténis. Essa jogada, compaginada com a maior certeza no seu serviço que o deixou, finalmente, ter jogos tranquilos e sem ameaças constantes, manteve o set igualado. Na cave da mente de Medvedev, ele quiçá estivesse a ter uma reunião secreta consigo próprio, já os The National o cantavam, à medida que no horizonte se desenhava a hipótese de um tie break - o russo é o único a ter perdido uma final do Open da Austrália após vencer os dois primeiros parciais, em 2022, contra Rafael Nadal.

Com o deambular dos pontos, a gravidade pareceu ser madrasta dos pés de Medvedev, a leveza evadira-o um pouco, já não se mexia com a mesma dose de reatividade. Custava-lhe responder à bola mais spinada, para ressaltar e o obrigar a subir a raquete nas pancadas. O set terminou com longas trocas de bola e o silêncio na arena de Melbourne até deixava entrar pelos microfones o arfar dos tenistas, nem era preciso estar atento para escutar as pesadas respirações. Todo este bolo doseou a agressividade no russo, sem recuar no campo ele tornou-se um pouco mais defensivo e o desgaste dos pontos também se refletiu no seu serviço (nem metade das primeiras tentativas eram bem-sucedidas).

Quando Jannik Sinner prevaleceu (6-4) com o tic posto numa estratégia em que acertou, a franja de Medvedev, atolada em suor, já só era um rabicho colado à testa. Os fantasmas da meia dúzia de finais do Grand Slam voltavam para atormentar o moscovita, especialmente aquele assustador da convalescença frente ao touro enraivecido espanhol. Após o italiano celebrar a conquista apenas com um suspiro, Daniil apressou-se a ir à casa de banho no descanso. Entre as necessidades fisiológicas, terá visto o seu reflexo no espelho.

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Foi o semblante de um tenista esgotado, de cara sugada pelo esforço, a retornar ao campo. Por demais dependente no seu serviço para ser ele a segurar na trela dos pontos, Medvedev sofreu com o renovado tino de Sinner, um monstro físico que agora se preocupava em fazer durar as trocas de bola, nem por isso esticando as bolas para perto das linhas, mas afincado em devolvê-las para o corpo pesado do adversário. A longevidade das trocas era inimiga de Daniil e o italiano, sapiente, obrigava-o a olhar para a fatura de duas semanas de batalhas na Austrália. O esforço a que o russo era obrigado de modo a evitar perder o serviço suplantava o feito pelo italiano para já encadear aquelas pancadas explosivas na passada.

Na primeira final do Open da Austrália desde 2005 sem qualquer um dos extraterrestres das raquetes presentes, contudo, Medvedev mostrou um esgar do uma das sublimidades esses três partilhavam: moribundo à vista desarmada, de repente recompôs-se, do nada ameaçou Sinner no 3-3 e teve um break point que logo se prestou a castigar a precipitação do italiano em querer dar cabo dos pontos cedo. O tirolês usou do canhão que tem no serviço para se safar, escavou para ir buscar a mentalidade de sobrevivente, mas o russo, num fogacho, aparentava não estar a cambalear assim tanto.

Não vale a pena recordar o que se diz das aparências porque o desgaste apoderou-se dele sem vergonhas. A servir para se manter no set, Medvedev foi encurralado pelas brutais pancadas de Sinner já completamente em modo bazuca, a disparar de todo o lado e a cansar um adversário a quem não sobrava fôlego para ir buscar boias de salvamento ao seu serviço.

A repetição de um 6-4 a favor do italiano obrigou a final a ir a um quinto duelo, expondo o quão de rastos estava um deles.

Sabe-se lá como, Daniil Medvedev arrancou-o a disputar pontos com mais de vinte pancadas com o tenista cabeça de cenoura que transpirava confiança da contrição do seu corpo - com a ameaça de ser quebrado logo a abrir, demonstrou-a ao fechar o 1-0 com um às no segundo serviço. O russo pedia mantimentos à sua equipa técnica, queria energia, enquanto o italiano queria era jogar, tinha-a de sobra. Brutal nas acelerações de direita que impunha nas trocas de bola, Jannik Sinner só solavancava nas precipitações da sua juventude, quando queria fechar os pontos com a impetuosidade dos 22 anos a sentirem a vulnerabilidade dos tão testados 27 do adversário.

A fatura de quatro jogos anteriores idos a cinco sets aniquilaram o russo quando se defendeu, a servir, de um 2-3, aí as narinas de Sinner encheram-se do odor a oportunidade e atacou o russo com tudo: atirou-lhes aos pés quando ele subiu à rede, colocou longas pancadas no canto do campo, martelou a bola para tentar furar a resistência de Medvedev. Quando o quebrou, agitou o punho fechado no maior laivo de emoção até então, as suas sardas tremiam com o vislumbre de um inédito triunfo num dos maiores palcos do ténis.

E curioso foi ver Daniil a acabar na sua natureza, a recolher ao conforto do hábito, defendendo o último jogo de serviço do adversário bem lá ao fundo, quase encostado à parede que separa o campo das bancadas. Nada pôde contra toda a força que Jannik canalizou nos serviços mais fulcrais da carreira. Quis encerrar as cerimónias com pressa e isso ainda lhe precipitou um pouco a mão quando Medvedev logrou devolver a bola, mas, afogado em desgaste, o russo era uma mera questão de ‘quando’. No desfecho, caminhou para lá da rede porque um tirolês também é humano, feito de carne e emoções.

Na vitória, Sinner deitou-se calmamente no piso, não se atirou para o chão como foi transversal a tantos campeões, até na erupção da felicidade que desarma o corpo ele parece ser contido. Ficou de olhos cerrados por uns segundos, era campeão. Cumprimentado o desgostado adversário, o corpo de Medvedev esfarrapado e feito um trapo do humano que perdia a quinta final de um Grand Slam, o italiano livrou-se do boné e exibiu os seus longos cabelos ruivos. A cenoura à mostra, para o mundo ver, vejam todos o novo campeão do ténis.

E da Austrália, porque há 10 anos que ninguém via um que não se chamasse Djokovic, Nadal ou Federer.

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