Ténis

Amanhã o sol vai nascer de novo para Coco Gauff, a campeã que aprendeu esta lição em Roland-Garros

Amanhã o sol vai nascer de novo para Coco Gauff, a campeã que aprendeu esta lição em Roland-Garros
Adam Pretty

A grandeza do momento, desta vez, não atormentou Coco Gauff, jovem que parece uma veterana por já andar no ténis há muito tempo e que ganhou, em três sets (6-7, 6-2 e 6-4), a Aryna Sabalenka, tão potente quanto instável. Enquanto a bielorrussa, líder do ranking, não domesticou a sua montanha-russa de frustração, a norte-americana manteve-se imperturbável a devolver bolas durante a final. Aos 21 anos, ganhou o seu segundo Grand Slam. E tinha que ser em Roland-Garros, o torneio que lhe ensinou que isto do ténis é minúsculo na grande escala da vida

Quão importante é divertirmo-nos na labuta que escolhemos? Desfrutar, mesmo. Podem alegar que o desporto se trata de outra loiça, que não se está com o traseiro na cadeira, os cotovelos na secretária, a coluna carcomida pela má postura, nem implicará acartar com coisas, mas atentemos a Aryna Sabalenka. No prélio da final, poucos minutos antes, parecia uma criança no balneário, brincava sorridente com os treinadores, víamos os dentes, andava por lá escorreita no relaxo sem se parecer com uma tenista prestes a pisar o Philippe-Chatrier, pela primeira vez, para uma decisão.

Parte da mudança saudável gabada à bielorrussa vem desta fresca leveza. Deixámos recentemente de a ver carrancuda, a fustigar-se em court pelos erros, refilona e furibunda com ela própria. Soltou Sabalenka grilhetas que tinha na cabeça, libertou-se o seu braço, mais eruptivo ficou o seu jogo e alcançou a primeira final em Roland-Garros, a escorregar na terra que tanto desdenhava. E que desfeita para Coco Gauff. A partida começou por fatiar a norte-americana em alguns bocados, perene a lidar com a pressão posta pela adversária em qualquer pancada. Todas as bolas que caíam no lado da mais juvenil causavam-lhe desconforto.

Sofreu um break ao terceiro jogo, chegou a perder nove pontos seguidos, num espirro a líder da hierarquia feminina fez o 4-1, imperial na colocação dos primeiros serviços que nem sempre entravam e pneumática a disparar do fundo do campo nas trocas de bola que tinham as tenistas lá atrás. A aparente sénior do ténis, aparecido aos 14 anos no circuito mas de vida só com 21 luas contadas, demorou a adaptar-se à intensidade mesmo que o jogo lhe desse pistas, havia gretas na armadura da bielorrussa quando Gauff apostava no slice, em bolas rasantes, ou sobrecarregasse a esquerda da mais velha. 

Atinando o seu jogo, dando pancadinhas na própria perna e fechando os olhos num tu-cá-tu-lá com os próprios botões, Coco serenou, refundou a paciência nos pontos importantes, deixou de se precipitar. E quando Sabalenka, em troca, ousou inventar, tentando um amorti numa troca crucial, a norte-americana devolveu-lhe o roubo de serviço, também a gentileza de estender uma mini-ditadura na final - ganhou 12 pontos seguidos. Pouco demorou a igualar o parcial, maltratando a esquerda da tenista mais vocal, gritante em cada pancada. 

Adam Pretty

No seu recato silencioso, a austera Gauff fez o difícil, apanhou a rival por entre a ventania e os seus conspirativos sopros que muito afetavam as jogadoras em cada serviço. Feito o mais complicado, Coco murchou, regressando aos erros perante a agressividade de Sabalenka, de novo quebradora do golpe da adversária, mas também ela hesitante: no jogo para fechar o primeiro set, deixou um par de duplas faltas, barafustou para a gravidade. Por certo aí, aos trambolhões na montanha-russa, não se divertia, soltando gritos de frustração até em pontos que ganhava.

Ruía Aryna diante Roland-Garros, nervosa e ansiosa, a encher-se de decisões precipitadas quando servia, falhando bolas infantis, tendo nos pés árvores coladas ao chão. A número 1 do ranking parecia prestes a vir por ali abaixo na compostura e Coco Gauff durante muita desse periclitante estado da adversária limitou-se a resistir, ir devolvendo bolas, enervando-a na persistência. Demorou a repor a igualdade a cinco jogos, rápida foi a quebrar depois a americana, de novo teve uma oportunidade na raquete para a final se aconchegar de vez às quebras de serviço. Só no tie-break se resolveria.

Acentuando o contraste sobre o pó de tijolo, saiu triunfante (7-6) a exuberante das tenistas, num ponto a duvidar das leis do universo ipirangas gritados para o céu e no outro a fazer uma arriscada esquerda-martelo bater sobre a linha na resposta a um serviço. Do oito ao oitocentos ia Sabalenka perante a impávida Gauff, uma parede calada a devolver bolas, constante na irritação que isso provoca a quem esteja do lado oposto da rede. Pouquíssimo as separava. Podia finalmente a bielorrussa ter fôlego, dar-se a algumas respirações fundas. Estava a ganhar, tinha uma base na qual assentar a compostura, a dianteira era sua e já não um qualquer prejuízo.

Julian Finney

Mas falível continuou, incapaz de domar os seus demónios da frustração. Demorou um instante até Coco ganhar os dois jogos iniciais do segundo set, fiável a lidar com as bruscas pancadas de Aryna que parecia jogar com uma fúria direcionada a ela própria. Nem se prestava a comemorar as bolas boas, eram só mais um pretexto para um gesto de desânimo, um esgar de desalento, sempre alguma irritação. Cedo Gauff a voltaria a roubar o serviço, nem precisava de condimentar o seu jogo com risco, bastava-lhe devolver pancadas na mesma dose de intensidade que Sabalenka tratava de se desmanchar sozinha.

Ainda luziu uma pequena reação quando devolveu um break à americana no baixio acentuado que ambas sofreram, às tantas, quiçá culpa da ventania, mas pouco além de um tímido beliscão causou a Coco Gauff. Sem uma ruga na face causado por emanar uma reação que fosse, sem oscilações, calma que nem um monge, fecharia o parcial com dois jogos em branco seguidos e um 6-2 ao fim de 32 minutos - o primeiro vivera até aos 80. Este vestiu uma capa de desastre para Aryna Sabalenka. 

O vento perdoou a final durante o derradeiro ato, farto de soprar com tanto afinco os imponderáveis que teimavam em chatear o jogo. Amainadas as rajadas, o nível do ténis agradeceu, Sabalenka entrou acelerada, Gauff também ganhou o seu primeiro jogo, mas a primeira a ceder foi a bielorrussa, mais do que incapaz, quase inapta a domesticar as emoções que até a empurravam a refilar com os treinadores, que se riam. Cheia de erros não propriamente forçados, a tenista de 27 anos era aos poucos superada pelo bisturi na raquete da mais nova: cirúrgica a colocar bolas, imperturbável pelo contexto (evolução brutal em relação a outras finais), a norte-americana era o que faltava à rival.

Era a constância em pessoa.

Julian Finney

De nada serviu à emotiva Sabalenka ainda roubar um saque a quem lhe fazia frente, esse feito foi perecível, pouco durou, a decidida Gauff retribuiu o furto logo a seguir. Era impossível que a bielorrussa se estivesse então a divertir, envolta em tanta frustração. Se há dois anos, em Nova Iorque, admitiu que não barrou a entrada do fervoroso apoio do público caseiro à norte-americana, cedendo no palco onde Coco ganhou o seu primeiro Grand Slam, em Paris tratou-se de outra coisa. Aryna faliu-se ao espelho, pareceu a sua pior inimiga, acabaria com 70 erros não forçados, um acumulado surreal para uma líder da hierarquia ter em plena final de um major.

Quando o troféu Suzanne Lenglen espreitou de esguelha na mente de Coco Gauff, por muito que de fora parecesse intacta, a mesma cara impávida, nem um rasgo de emoção na face, o match point retirou uma bola fantástica de Sabalenka caída sobre a linha e, no ponto seguinte, a norte-americana jogaria com receio, só com pancadas curtas, a mão a hesitar. Poderão ter sido fantasmas de 2022, quando sucumbiu ao poderio de Iga Swiatek na final que a atropelou, sentindo-se assoberbada pelo cenário. Mas então, e entretanto, chegou a uma conclusão: “Apercebi-me o quão minúsculo isto é. Toda a gente lida com coisas bem maiores na vida do que perder uma final.”

A própria Paris ajudou-a a entender quando, no dia seguinte, deu uma passeata pela cidade e ninguém deu por ela. Mais difícil será que replique a experiência amanhã, com o casaco de cabedal vestido, à motoqueira, com que entrou nos courts nesta edição, quando as luzes parisienses já lhe brilharem de outra forma. Como a da maior estrela que há no céu também lhe ensinou. “Pensei que seria o fim do mundo, mas o sol continuou a nascer no dia seguinte.” Roland-Garros teve este efeito em Coco Gauff, campeã do seu segundo Grand Slam com 21 anos. O sol voltará a nascer para ela.

Clive Brunskill

E Aryna Sabalenka petrificada, sem reação no seu banco, sentada a tentar perceber onde exatamente perdeu as estribeiras, toda ela uma antítese de divertimento. Partiu o coração vê-la chorar no momento em que se pede aos derrotados para falarem, a pedir desculpa à sua equipa pelo, nas suas palavras, terrível ténis. Também garantiu que regressará mais forte.

Vendo bem a fotografia, tendo Paris como professora, a lição será a mesma para ambas.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt